O modelo nacional desenvolvimentista não deu conta do recado, seja com a direita ou com a esquerda no poder
Obra do modernista Cassiano Ricardo, ‘Martim Cererê’, da Editorial Record, é um longo poema indigenista e nacionalista, no qual o índio, o negro e o branco tomam posse e inventam um novo país. Publicado pela primeira vez em 1928, integra a trilogia de textos antropológicos do modernismo, com ‘Manifesto Antropófago’, de Oswald de Andrade, e ‘Macunaíma’, de Mário de Andrade. Retrata as origens do Brasil desde seus primórdios, passando pelo processo de interiorização do território e seu desenvolvimento, com criaturas fantásticas, gigantes, lendas brasileiras. Nossa rica mitologia é utilizada na poesia de Cassiano, um precursor, digamos, de nossa “hibridização” cultural.
Tudo isso teria se perdido no tempo e ficado restrito aos estudiosos das Letras se a Imperatriz Leopoldinense, no carnaval de 1972, não houvesse revisitado a sua obra com um enredo que incendiou a avenida, graças aos versos curtos e ao refrão magistral de Zé Catimba: “Vem cá Brasil/Deixa eu ler a sua mão menino/Que grande destino/Reservaram pra você/Fala Martim Cererê/Lá lá lá lá lauê/Fala Martim Cererê/Lá lá lá lá lauê/Fala Martim Cererê”.
Era o auge do regime militar e o “milagre econômico” abafava as críticas da oposição. O samba fazia uma síntese do programa de integração nacional e desenvolvimentista da ditadura: “Tudo era dia/O índio deu a terra grande/O negro trouxe a noite na cor/O branco a galhardia/E todos traziam amor/Tinham encontro marcado/Pra fazer uma nação/E o Brasil cresceu tanto/Que virou interjeição”.
Alguns anos depois, o cenário havia mudado, veio a crise do petróleo, o partido do governo começou a sofrer derrotas acachapantes e a economia desandou de vez. O projeto dos militares foi por água abaixo, não tinha sustentabilidade, do ponto de vista da situação internacional, da legitimidade política e pelo fato de que não produzia riquezas suficientes para financiar o setor público e redistribuir renda. A intervenção do Estado na economia se esgotou e entrou em colapso. O oba-oba do “Pra frente Brasil!” se apoiava em um modelo econômico ufanista e perdulário, mais ou menos como aconteceu recentemente, no segundo mandato de Lula e no primeiro de Dilma.
Nos idos de 2010, ano da consagração de Lula e da eleição de Dilma, um poste de saias, um repeteco do samba da Imperatriz, teria tudo a ver: “ Lá lá lá lá lauê/Fala Martim Cererê/Lá lá lá lá lauê/Fala Martim Cererê/Gigante pra frente a evoluir/Laiá laiá/Milhões de gigantes a construir/Laiá laiá laiá/Gigante pra frente e a evoluir/Laiá laiá/Milhões de gigantes a construir.” Mas deu tudo errado novamente.
O modelo nacional desenvolvimentista não deu conta do recado, seja com a direita ou com a esquerda no poder. O Brasil não consegue crescer com sustentabilidade, muito menos oferecer um padrão de classe média à maioria da população. Como chegar nesse patamar se não tem serviços públicos de qualidade na saúde, na educação, na segurança e na mobilidade urbana? Fez do consumo um fetiche, sustentado à custa do endividamento de idosos, servidores públicos e assalariados.
No ufanismo de Zé Catimba, porém, o Brasil era uma interjeição positiva, ou seja, com a expressão de emoções, sensações, estados de espírito, sem necessidades de estruturas linguísticas mais elaboradas, em um patamar que buscava parâmetro nos países mais ricos. O Brasil era apelo e exclamação ao mesmo tempo, o que os torcedores costumam escutar nas transmissões dos jogos da seleção brasileira de futebol, desde a Copa do Mundo de 1970, no México.
Perplexidade
Por que falar de samba-enredo ainda longe do carnaval? Ora, porque o Brasil hoje é uma interrogação, que enseja emoções, sensações e os estados de espírito de natureza completamente diferentes. O país está uma droga, para não dizer outra coisa. Parece que os políticos não estão percebendo a mudança de humor da população. A situação desandou e quase nada acontece para reverter o quadro.
O governo Temer está meio perplexo e paralisado diante da crise ética, para não dizer, em pânico; a recessão se aprofundou, as reformas não andam e as previsões de saída da crise, por parte da equipe econômica, são cada vez mais a longo prazo. Finalmente, parece que a Operação Lava-Jato enlouqueceu os políticos e subiu à cabeça dos procuradores da República. As manifestações de hoje são um sinal de que o presidente Temer corre sério risco de desestabilização. É preciso, porém, fazer alguma coisa para chegarmos a 2018 sem uma ruptura institucional, sem colapso total da economia. As alternativas que se apresentam, à direita e/ou à esquerda, tendem a repetir os erros históricos de ambas. Urge um novo projeto de Brasil.
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