Uma grande queda de braço entre a Câmara e o governo está contratada: a revogação dos decretos de Lula que alteraram o novo marco do saneamento, vista como um retrocesso estatizante
“Isso tem que ficar bem claro, nosso bloco é pela estabilidade e pela governabilidade. Para ajudar a pacificar o país e o governo montar sua base sólida na Câmara”, anunciou o líder do PSB na Câmara, Felipe Carreras (PE), ao apresentar os demais colegas de liderança do superbloco de 173 deputados formado pelo PP, partido do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), e mais União Brasil, Patriota, PSB, PDT, PSDB, Cidadania, Solidariedade e Avante. Escolhido para ficar à frente do grupo, Carreras é um dos líderes que dão sustentação a Lira e já se articula para sua sucessão no comando da Casa.
Muito heterogêneo, o bloco não tem identidade programática nem carta de intenções. Seus objetivos são negociar com mais força a liberação de verbas e ocupação de cargos no governo Lula e articular a ocupação de espaços na própria Câmara. Além de Carreras, os demais líderes do bloco são aliados de primeira hora do atual presidente da Câmara: deputados Elmar Nascimento (União Brasil-BA), André Fufuca (PP-MA), Adolfo Viana (PSDB-BA), Alex Manente (Cidadania-SP), André Figueiredo (PDT-CE), Luís Tibé (Avante-MG) e Áureo Ribeiro (Solidariedade-RJ).
Com a formação do superbloco, o presidente da Câmara recupera a capacidade de iniciativa na Casa, que estava ameaçada pela formação do blocão de 142 deputados do MDB, do PSD, dos Republicanos, do Podemos e do PSC. Mais alinhado ao governo, esse bloco dividiu o chamado Centrão e empurrava Lira para o colo do bolsonarismo, representado pelo PL de Valdemar Costa Neto, com 99 deputados, a maior bancada partidária, isoladamente. O ex-ministro da Casa Civil Ciro Nogueira, presidente do PP, é aliado de Lira.
Segundo Carreras, o grupo pretende “ajudar o governo federal em pautas prioritárias”. Pelo acordo, haverá rodízio na liderança do superbloco a cada dois meses. O líder do PDT, André Figueiredo, será o próximo a ocupar o cargo. Segundo ele, o fato de os partidos de esquerda comandarem o grupo no primeiro momento tem por objetivo “manter um bom relacionamento com o governo”. Lira articulava um bloco de 108 deputados do PP e do União Brasil, porém, numa manobra muito ousada, resolveu compor com os partidos de esquerda.
De certa maneira, o novo bloco fortalece o governo Lula, mas isola o PT, que formou uma federação com o PCdoB e o PV. Explora as contradições criadas pelo hegemonismo petista no governo, que descontenta os aliados do PSB e do PDT, principalmente. Há muitas divergências entre partidos de esquerda, de centro e de direita que integram o superbloco, mas todos estarão alinhados com Lira nas principais votações da Câmara. Nesse sentido, a grande queda de braços com o governo já está contratada: a revogação dos decretos do governo que alteraram o marco do saneamento, por meio de decreto legislativo apresentado pela bancada do Cidadania, com apoio de Lira.
Queda de braço
Recentemente, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva alterou a Lei Federal 14.026/20, o chamado novo marco do saneamento, cujo objetivo é a universalização do acesso à água potável, à coleta e ao tratamento de esgotos. Hoje, 33 milhões de brasileiros não têm água tratada e 100 milhões, coleta de esgotos. Na Região Norte, 43% da população não tem a água tratada e 90% não têm tratamento de esgoto; no Nordeste, apenas 30% da população têm esgoto coletado. A falta de acesso ao saneamento básico atinge, principalmente, as famílias de baixa renda, o que eleva os custos da saúde pública, por exemplo.
A mudança no marco regulatório é vista como um retrocesso no programa de privatizações das companhias estaduais de saneamento, considerado irreversível, do ponto de vista político. No Rio de Janeiro, por exemplo, a privatização da Cedae trouxe muitos benefícios eleitorais para o governador Cláudio Castro (PL), que foi reeleito. Em São Paulo, a privatização da Sabesp é uma promessa de campanha do governador Tarcísio de Freitas (Republicanos). Um dos benefícios do novo marco foi o estabelecimento de métricas de avaliação dos serviços e sua fiscalização, com ganhos de qualidade para a população.
Quando foi aprovado, os partidos de esquerda votaram contra o novo marco. Agora, tentam reverter a legislação aprovada pelo Congresso. Segundo o prefeito de Aracaju, Edvaldo Nogueira (PDT), presidente da Frente Nacional dos Prefeitos, a legislação precisa ser aperfeiçoada, para oferecer mais garantias de prestação dos serviços aos municípios, mas não deve retroceder quanto às privatizações, porque comprovadamente houve avanços na qualidade dos serviços prestados, com as concessões e parcerias público-privadas, como no caso de Aracaju.
Existe um imbróglio jurídico em relação ao saneamento, porque a titularidade das concessões, constitucionalmente, é dos municípios, mas as antigas companhias eram estaduais. As maiores cidades, como as capitais, são as que financiam os serviços de saneamento dos pequenos municípios. Se depender apenas da iniciativa privada, e não houver um arranjo institucional adequado, as pequenas cidades continuarão sem tratamento de esgoto.