“Dissidentes do PDT e do PSB podem protagonizar a emergência de uma nova esquerda no Congresso, de caráter democrático e liberal, sem o viés nacionalista e socialista que caracteriza historicamente a esquerda brasileira”
O presidente do PDT, Carlos Lupi, anunciou ontem a suspensão dos oito deputados que votaram a favor da reforma da Previdência contra a orientação do partido: Alex Santana (BA), Flávio Nogueira (PI), Gil Cutrim (MA), Jesus Sérgio (AC), Marlon Santos (RS), Silvia Cristina (RO), Subtenente Gonzaga (MG) e Tabata Amaral (SP). Todos desafiaram os caciques da legenda, inclusive o ex-governador Ciro Gomes, que exigiu punição dos rebeldes em caráter pedagógico. Segundo ele, os deputados não podem servir a dois senhores, numa referência aos movimentos Acredito e RenovaBR, dos quais fazem parte.
Esses parlamentares são alinhados ao programa de renovação política de alguns movimentos aos quais estão ligados, como Acredito e RenovaBR, antes mesmo de terem se filiado à legenda. É o caso da jovem deputada Tabata Amaral, uma estrela em ascensão na política nacional, que escolheu o PDT como legenda por lhe oferecer melhores condições do que o Cidadania e a Rede para disputar uma vaga de deputada federal por São Paulo. É jogo jogado, ninguém foi enganado.
O comentário de Ciro Gomes lembra a famosa polêmica que deu origem ao “centralismo democrático”dos partidos comunistas, entre o líder bolchevique Vladimir Lênin e o social-democrata Julius Matov, na fundação do Partido Socialista Operário Russo (PSOR), em 1902. Martov era um importante líder da União Geral dos Trabalhadores Judeus da Lituânia, Polônia e Rússia, que havia aderido aos bolcheviques. Pretendia manter sua organização, mas foi impedido por Lênin, que proibiu a dupla militância com o argumento de que um partido revolucionário não poderia abrir mão de um “centro único” dirigente.
Curiosamente, no Brasil, o antigo PCB, que mudou para PPS e, agora Cidadania, aboliu o centralismo democrático e se tornou uma Babel de tendências políticas, o que se reflete no posicionamento contraditório da bancada em relação ao governo Bolsonaro. Entretanto, seus oito deputados votaram unidos a favor da reforma da Previdência e agora abrem as portas da legenda para os dissidentes do PDT, acusados de serem neoliberais. Outras siglas, como o Novo e a própria Rede, também disputam corações e mentes desses dissidentes.
Entretanto, pode ser que estejamos presenciando um outro fenômeno: a gênese de uma nova esquerda, em ruptura com a esquerda tradicional, da qual o PDT e o PSB fazem parte, como partidos mais moderados do que o PT e o PSol, por exemplo. É preciso atenção também para os 11 dissidentes do PSB, contra os quais o presidente do Conselho de Ética da legenda, Alexandre Navarro, abriu um processo disciplinar.
Os deputados Átila Lira (PI), Emidinho Madeira (MG), Felipe Carreras (PE), Felipe Rigoni (ES), Jefferson Campos (SP), Liziane Bayer (RS), Luiz Flávio Gomes (SP), Rodrigo Agostinho(SP), Rodrigo Coelho (SC), Rosana Valle (SP) e Ted Conti (ES) também votaram a favor da reforma da Previdência, contrariando a orientação da direção do PSB, cujo eixo dominante é o clã Arraes, em Pernambuco. A maioria também faz parte dos movimentos Acredito e Renova BR.
Fundo eleitoral
Somados, esses 19 deputados podem protagonizar a emergência de uma nova esquerda no Congresso, de caráter democrático e liberal, sem o viés nacionalista e socialista que caracteriza historicamente a esquerda brasileira. A agenda desses parlamentares, na verdade, está em choque com os programas e as estruturas partidárias das quais fazem parte. Democracia interna, ética, diversidade, pluralismo e transparência são valores dessa nova esquerda que nasce, sem os dogmas dos movimentos nacional-libertadores e socialistas. Falta-lhes um partido que ofereça essa possibilidade.
Obviamente, tanto o PDT como o PSB não têm nenhum interesse em que haja esse descolamento, por vários motivos, entre os quais o impacto que isso pode vir a ter no fundo eleitoral das duas legendas (os deputados carregam os recursos para onde forem). Por isso mesmo, não haverá expulsão. Se esses deputados deixarem o partido por causa do constrangimento que estão passando, os suplentes poderão pleitear as suas respectivas vagas na Justiça Eleitoral.
Até nova janela partidária, no próximo ano, haverá tensão entre os deputados dissidentes e as cúpulas partidárias. Pode ser até que haja alguma acomodação, em razão dos interesses regionais, que foram determinantes para a presença desses deputados nas respectivas legendas. O mais relevante, entretanto, é que a votação da reforma da Previdência revelou um choque de concepções entre o velho e novo nesses partidos de esquerda. Um choque que vai se reproduzir em outras votações, em razão da agenda de modernização da economia e reforma do Estado.
Esse choque não se resolve em termos de um conflito de gerações, que ele também reflete, mas dentro de cada geração. Esse é o fato novo do processo: no bojo da renovação promovida pelo tsunami eleitoral de 2018, uma nova esquerda germinou. Ela agora ganha sua própria cara no Congresso, assim como existe também uma nova direita, mais democrática e reformadora que os setores reacionários que defendem uma agenda regressista em relação aos costumes, à educação, aos direitos humanos, à saúde e à segurança pública. Mas essa já é outra história.