Nas entrelinhas: No ano que vem a gente não morre mais

compartilhe

Não é fácil, numa época de confraternizações, como foi o Natal e será o ano-novo, puxar o freio de mão nas comemorações coletivas. Mas é preciso cuidado

A música Sujeito de sorte, de Belchior, foi um dos hits de 2021, na voz de Emicida, Maju e Pablo Vittar, desde que a velha canção do álbum Alucinação foi sampleada pelo rapper paulista no álbum AmarElo, ganhador do Grammy Latino. A gravação ao vivo, no Teatro Municipal de São Paulo, lotado de moradores da periferia de São Paulo, deu origem a um excelente documentário, uma boa pedida para quem ainda não viu e não quer “olhar pra cima” (ou já olhou) nessa virada de ano. Emicida se destaca não apenas por sua atuação artística, mas também por suas ideias generosas, que trazem para o centro do debate a realidade das periferias urbanas e puxam os fios de história que ligam o hip hop brasileiro ao nosso samba tradicional.

O sucesso da regravação de Sujeito de sorte tem a ver com os tempos de cólera política e de pandemia que estamos vivendo: “Presentemente eu posso me considerar um sujeito de sorte/ Porque apesar de muito moço me sinto são e salvo e forte/ E tenho comigo pensado/ Deus é brasileiro e anda do meu lado/ E assim já não posso sofrer no ano passado/ Tenho sangrado demais, tenho chorado pra cachorro/ Ano passado eu morri mas esse ano eu não morro/ Ano passado eu morri mas esse ano eu não morro/Ano passado eu morri mas esse ano eu não morro”.

Esses versos da canção de Belchior são atribuídos ao mitológico cantador Zé Limeira (1886-1954), um repentista analfabeto, nascido em Teixeira, na Paraíba, imbatível nos seus improvisos surrealistas, segundo o jornalista Orlando Tejo, seu conterrâneo, autor do livro “Zé Limeira – O Poeta do Absurdo”, publicado em 1973. O repentista dominava a rima e a métrica, mas não dava a mínima para a oração, o que era considerado um insulto pelos cantadores de sua época. Entretanto, fazia muito sucesso de público, perambulando pelos sertões nordestinos, em jornadas de até 60 quilômetros a pé, num dia, para participar de desafios com outros cantadores famosos, como o Cego Aderaldo.

Após o sucesso de Belchior, Tejo pleiteou a autoria dos versos, o que gera grandes controvérsias. Não havia documentação sobre a obra de Zé Limeira, cuja vida foi romanceada por Tejo, um defensor da métrica, com suposto propósito de provocar os poetas concretistas. Não importa, a distopia sertaneja de Zé Limeira influenciou outros artistas, como Belchior e Zé Ramalho, e tem tudo a ver com o momento que o país está vivendo, inclusive nessa passagem de ano, na qual uma epidemia de Influenza (H3N2) tomou de assalto as nossas cidades, lotando as emergências do SUS, e a nova variante da Covid-19, a sul-africana Ômicro está chegando com tudo, sem que o país esteja devidamente preparado para ela.

Pensamento positivo
Três doses no braço da maioria dos velhinhos e outros grupos de risco e uma variante aparentemente menos letal, embora altamente transmissível, não justificam as medidas adotadas por Marcelo Queiroga, o falso ministro da Saúde, e Milton Ribeiro, o da (des)Educação, contra a vacinação de crianças e a obrigatoriedade de apresentação do certificado de vacinação nas escolas, respectivamente. São dois negacionistas alinhados com o presidente Jair Bolsonaro, que novamente erra no diagnóstico da pandemia (talvez pense: agora sim, a Ômicron é uma “gripezinha), e aposta outra vez na “imunização de rebanho” para não atrapalhar a economia.

Essa política nos levou a 618 mil mortos até agora. A nova onda da pandemia precisa ser tratada sem alarmismo, mas com responsabilidade, ou seja, com medidas adequadas: vacinação em massa, uso generalizado de máscaras, asseio permanente das mãos e distanciamento social. Não é fácil, numa época de confraternizações, como foi Natal e será o ano-novo, puxar o freio de mão nas comemorações coletivas. Mas a realidade já está mostrando que é preciso cuidado redobrado, ainda mais quando o próprio governo federal sabota a saúde pública e expõe a população aos seus desatinos.

Entretanto, eis a outra face do Brasil, aquela que vai à luta por dias melhores, que adota os devidos cuidados e resiste nos pequenos negócios, nas atividades agrícolas, industriais e de serviços, na cultura e nas atividades essenciais, entre as quais as da saúde, da limpeza urbana, da segurança pública e tantas outras, sem as quais seria impossível os encontros familiares na passagem de ano. Esqueçam o presidente Jair Bolsonaro e seus passeios de jet sky, oremos por milhares de pessoas que chapinham na lama para tentar salvar o que lhes restam de bens, após as enchentes na Bahia, ou buscam socorro médico nas emergências do SUS em todo o país. Como o sertanejo Zé Limeira, vamos pensar positivamente em 2021: ano que vem a gente não morre mais.

Feliz ano-novo!

Luiz Carlos Azedo

Jornalista

Posts recentes

Lula ganha de Motta presente de Natal de R$ 20 bi em aumento de receita

No fundo, a reaproximação é um pacto de sobrevivência para 2026. Motta precisa operar a…

13 horas atrás

De olho nas emendas parlamentares, Flávio Dino vira “caçador de jabutis”

Dino suspendeu os efeitos do dispositivo legal que exumava as emendas secretas. O dispositivo previa…

2 dias atrás

Orçamento sob medida para as eleições: R$ 61 bi em emendas parlamentares

Na prática, o que se vê é a substituição do planejamento público por uma lógica…

4 dias atrás

Supostos negócios de Lulinha com Careca do INSS são dor de cabeça para Lula

Estava tudo sob controle na CPMI, até aparecerem indícios de que Antônio Carlos Camilo Antunes,…

6 dias atrás

Acordo entre governo e oposição garante aprovação do PL da Dosimetria

O projeto altera a Lei de Execução Penal, redefine percentuais mínimos para progressão de regime…

1 semana atrás