Nas entrelinhas: Navegar é preciso

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Ulysses foi derrotado nas eleições de 1989, mas deixou um exemplo de coerência, de combatividade e de integridade política

Conheci Ulysses Guimarães em 1973, em Niterói, onde lançou sua campanha de anticandidato a presidente da República. Nessa época, era um jovem repórter d’O Fluminense, o vetusto jornal do antigo estado do Rio de Janeiro, fundado em 1878, pelo qual passaram Euclides da Cunha, Oliveira Vianna, Olavo Bilac, Irineu Marinho e Rubem Braga. Não havia ocorrido ainda a fusão com a antiga Guanabara, a obra da Ponte Rio-Niterói estava de vento em popa e o futuro presidente da República já havia sido escolhido: seria o general Ernesto Geisel, irmão do ministro do Exército, Orlando Geisel, no governo linha-dura de Emílio Médici.

Em plena ditadura, o lançamento da candidatura à Presidência do antigo MDB, o partido de “oposição consentida”, como dizia a esquerda mais radical, contra o general que assumiria o poder, parecia um gesto de loucura. A eleição era indireta e os principais líderes do país estavam com os direitos políticos cassados (Juscelino Kubitschek, Carlos Lacerda, João Goulart, Leonel Brizola, Luís Carlos Prestes, entre outros), alguns no exílio. A candidatura de Ulysses era uma afronta política aos militares, que ainda perseguiam a oposição clandestina a ferro e fogo, sequestrando, torturando e matando, embora os focos de guerrilha urbana e rural já estivessem liquidados.

Ulysses chegou à antiga Assembleia Legislativa fluminense acompanhado do senador Amaral Peixoto (MDB), velho cacique do PSD, que emprestava o próprio nome à principal avenida de Niterói, onde estava localizada, ao lado do seu vice, o ex-governador pernambucano Barbosa Lima Sobrinho, outro destemido. O governador fluminense da época era um notório integralista, Raimundo Padilha, e o líder de seu governo, o dono do jornal onde eu trabalhava, o deputado estadual Alberto Torres (Arena), veterano político udenista, irmão do marechal Paulo Torres, comandante da Brigada de Paraquedistas do Rio de Janeiro, que no ano seguinte seria derrotado na eleição ao Senado por Saturnino Braga.

O ato tinha tudo para ser um fracasso, não fosse a presença do também veterano senador Nélson Carneiro (MDB), eleito pela antiga Guanabara e conhecido nacionalmente por sua persistente defesa da lei do divórcio, e de uma barulhenta plateia de jovens estudantes e trabalhadores que haviam sido mobilizados pelo diretório municipal do PMDB e seu Departamento de Juventude, que abrigavam os militantes do clandestino Partido Comunista Brasileiro, além dos caciques do MDB local, que não escondiam a surpresa e temor com tanta agitação.

Alvíssaras!

Quando Ulysses leu o seu discurso de anticandidato, que já estava publicado em folheto, eletrizou as galerias do velho palácio em estilo neoclássico, inaugurado em 1917, no qual se destacam quatro painéis de Antônio Parreiras e as estátuas Ordem e Progresso, do italiano Hugo Tadei. Denunciou o regime, destacou o papel da oposição e encheu de poesia os corações dos jovens que ali estavam, num discurso homérico:

“A caravela vai partir. As velas estão paridas de sonho, aladas de esperanças. O ideal está ao leme e o desconhecido se desata à frente. No cais alvoroçado, nossos opositores, como o velho do Restelo de todas as epopeias, com sua voz de Cassandra e seu olhar derrotista, sussurram as excelências do imobilismo e a invencibilidade do establishmentt. Conjuram que é hora de ficar e não de aventurar. Mas no episódio, nossa carta de marear não é de Camões e sim de Fernando Pessoa ao recordar o brado:

“Navegar é preciso.

Viver não é preciso”.Posto hoje no alto da gávea, espero em Deus que em breve possa gritar ao povo brasileiro: Alvíssaras, meu Capitão. Terra à vista! Sem sombra, medo e pesadelo, à vista a terra limpa e abençoada da liberdade.”

Quando o discurso acabou, o vereador Carlos Augusto Coimbra de Melo (MDB), professor e advogado trabalhista, empolgado, propôs a Ulysses ir a pé até a Praça Araribóia, onde fica estação das barcas para o Rio de Janeiro, numa passeata até então inimaginável e que, depois, se repetiu por todo o país. Mesmo quando se tentou impedir, com soldados e cães policiais, que Ulysses e a oposição ganhassem as ruas para clamar pela liberdade e pela democracia, como aconteceu depois em Salvador.

Ontem, o PMDB comemorou o centenário de nascimento de Ulysses Guimarães, paulista de Rio Claro, com uma sessão solene na Câmara e um show de Gilberto Gil e Nando Reis, em Brasília. Grande artífice da Constituição de 1988, Ulysses foi derrotado nas eleições de 1989, mas deixou um exemplo de coerência, de combatividade e de integridade política para qualquer jovem que queira inspiração para entrar na política de cabeça erguida e com o coração ardente. Seu corpo desapareceu nas águas do Atlântico, em 12 de outubro de 1992, após o acidente de helicóptero que lhe tirou a vida, mas o seu exemplo está mais vivo do que nunca.

Luiz Carlos Azedo

Jornalista

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