“Quem disse que a democracia nos Estados Unidos estava à beira da morte queimou a língua”
Poeta, dramaturgo, romancista, ensaísta, fotógrafo e ator, Evguêni Evtuchenko (1932- 2017) foi o cronista da mudança política na antiga URSS. Nos anos 1960, seus recitais ao lado de Bella Akhmadulina, sua ex-mulher, atraíam multidões que lotavam estádios. Seu poema Babi Yar, nome de um desfiladeiro nas imediações de Kiev, que relata o massacre de 35 mil judeus pelos nazistas, em setembro de 1941, serviu de inspiração para a 13ª Sinfonia de Chostakóvitch, cuja força lírica também foi uma crítica ao antissemitismo soviético.
Seu livro em prosa Não morra antes de morrer, publicado no Brasil pela Record, em 1999, relata a crise que levou ao colapso o sistema soviético, depois do sequestro de Mikhail Gorbatchov pelos militares, que tentaram dar um golpe de Estado contra a perestroika. Foi um tiro pela culatra, pois houve grande reação popular. Evtuchenko e o então presidente da Rússia, Boris Yeltsin, lideraram os protestos que acabaram frustrando os objetivos da linha dura comunista e resultaram no fim do comunismo soviético.
Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, dois conceituados professores de Harvard, são os autores do best-seller Como morrem as democracias (Zahar), o livro político da moda no Brasil. É uma leitura instigante, porque eles procuram explicar como a eleição de Donald Trump se tornou possível e mostram as vicissitudes dos regimes democráticos do Ocidente nos últimos 100 anos, com destaque para a ascensão do nazismo na Alemanha, com Hitler, e do fascismo na Itália, com Mussolini, dois líderes carismáticos que se aproveitaram do direito de expressão e da liberdade de organização asseguradas pela democracia para se tornar ditadores sanguinários.
No mesmo embalo, fazem uma radiografia das ditaduras latino-americanas da década de 1970, entre as quais as do Cone Sul, inclusive o Brasil. Segundo eles, a democracia atualmente não termina com uma ruptura violenta nos moldes de uma revolução ou de um golpe militar; agora, a escalada do autoritarismo se dá com o enfraquecimento lento e constante de instituições críticas — como o Judiciário e a imprensa — e a erosão gradual de normas políticas de longa data. A Rússia de Putin, a Turquia de Erdogan e a vizinha Venezuela de Maduro seriam exemplos desse processo. Lançado às vésperas das eleições aqui Brasil, nas quais o deputado Jair Bolsonaro foi eleito presidente da República, o livro é um sucesso de crítica e de vendas, quando nada porque deu sustentação teórica ao alarmismo que cercou a vitória do capitão reformado do Exército.
De fato, uma onda conservadora varre as democracias do Ocidente, ressuscitando forças ultradireitistas e velhos sentimentos chauvinistas. Ao mesmo tempo, as elites políticas tradicionais e seus partidos são atropeladas por movimentos cívicos e atores subterrâneos nas redes sociais, sem saber bem o que fazer para se manterem no poder. No Brasil, não é muito diferente o que aconteceu nas eleições. Entretanto, mais uma vez, a democracia norte-americana, que surpreendeu o mundo com a eleição de Barack Obama e do próprio Donald Trump, volta a demonstrar sua vitalidade e capacidade de oferecer contrapesos ao poder da Casa Branca.
Onda azul
Ao renovar a Câmara dos Representantes, os eleitores americanos cortaram as asas de Donald Trump, que utilizou a vitória de 2016 para dividir ainda mais o país, com suas declarações racistas e xenófobas. Agora, será duro o caminho para a sua reeleição. Embora tenha preservado a maioria vermelha no Senado (é isso mesmo: nos EUA, vermelhos são os republicanos), a “onda azul” democrata obrigará Trump a buscar o caminho do centro, quando nada porque seu poder foi limitado e estará sob a vigilância da nova maioria democrata na Câmara. Adeus à construção do muro no México; a revogação do Obamacare, outra grande obsessão, é um projeto derrotado.
Quem disse que a democracia nos Estados Unidos estava à beira da morte queimou a língua. Foi por causa disso que lembrei o falecido poeta russo e sua crônica memorialista. Na fornada eleitoral do Partido Democrata, na qual brilhou a liderança do ex-presidente Obama, foram eleitos latinos, indígenas, muçulmanos e até um governador gay, no Colorado. Além disso, os democratas ganharam força para investigar os negócios do presidente da República e até aprovar um processo de impeachment, caso se comprove seu envolvimento com Putin nas eleições. Restarão a Trump a blindagem republicana do Senado e seu próprio poder de veto.
Ontem, o presidente eleito Jair Bolsonaro indicou a sexta integrante de seu governo, a deputada Tereza Cristina (DEM-MS), para o Ministério da Agricultura. Presidente da Frente Parlamentar Agropecuária do Congresso Nacional, é engenheira agrônoma e empresária. Nos bastidores da Câmara, sua escolha foi o resultado de um grande embate entre ex-integrantes da antiga União Democrática Ruralista (UDR), que projetou o recém-eleito governador de Goiás, Ronaldo Caiado, e representantes do agronegócio paulista, que foram contra a extinção do Ministério do Meio Ambiente e levaram a melhor na queda de braço. Depois da indicação do juiz federal Sérgio Moro para o Ministério da Justiça, com um olho na opinião pública e outro no Congresso, foi outro gol de placa de Bolsonaro na montagem de sua equipe.