Nas entrelinhas: Movimento dos barcos

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Quando a notícia chegou, lembrei-me da velha música de Jards Macalé e José Carlos Capinam, na voz de Maria Bethânia, um dos ícones da Tropicália. “Tô cansado/E você também/Vou sair sem abrir a porta/E não voltar nunca mais/Desculpe a paz que eu lhe roubei/E o futuro esperado que eu não dei/É impossível levar um barco sem temporais/E suportar a vida como um momento além do cais”. No contexto em que foi lançada, a letra do baiano Capinam tinha duplo sentido, assim como a melancólica melodia tecida no violão de Macalé.

No começo dos anos 1970, o regime militar estava em pleno processo de fascistização. Ninguém imaginava a política de distensão de Geisel e a acachapante vitória da oposição nas eleições de 1974, que desencadeou nova onda de repressão contra os que conseguiram permanecer no país e organizaram a resistência pacífica e democrática de oposição. Naquela época, muitos foram forçados ao exílio, estavam presos, foram mortos ou haviam desaparecido. Hoje, o sentido pode ser outro, em meio à crise ética. Ainda bem que a recessão acabou.

A letra fala em partida e derrota, em decepção e separação: “Não quero ficar dando adeus/Às coisas passando, eu quero/É passar com elas, eu quero”. E deixa um fio de esperança: “Não, não sou eu quem vai ficar no porto chorando, não/Lamentando o eterno movimento/Movimento dos barcos, movimento”. Lembrei-me do Porto de Santos, cuja barra já cruzei no velho Normandie, do meu amigo Jadir Serra, saindo do canal do Guarujá rumo à Ilha Grande, no litoral fluminense.

Perdão pela licença poética, a notícia do dia me fez viajar no tempo. Vamos a ela: a abertura de inquérito para investigar o presidente da República, Michel Temer, por suspeita de corrupção e lavagem de dinheiro na edição de um decreto no setor de portos, por decisão do ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal, vai exumar velhas histórias policiais do Porto de Santos, da época em que gente graúda embarreirava uma investigação.

Segundo Barroso, existe razoabilidade no pedido da Procuradoria-Geral da República para a instauração de inquérito. Supostamente, “os elementos colhidos revelam que Rodrigo Rocha Loures, homem sabidamente da confiança do presidente da República, menciona pessoas que poderiam ser intermediárias de repasses ilícitos para o próprio presidente da República, em troca da edição de ato normativo de específico interesse de determinada empresa, no caso, a Rodrimar”. Esse pedido do procurador-geral Rodrigo Janot não fazia parte das suas flechadas de fim de mandato, foi encaminhado em junho para o Supremo Tribunal Federal (STF) e redistribuído. O assunto não integra o escopo de investigações da Operação Lava-Jato, cujo relator é o ministro Edson Fachin. Por sorteio, foi parar logo nas mãos de Barroso, um ministro defensor da Lava-Jato.

“A ninguém deve ser indiferente o ônus pessoal e político de uma autoridade pública, notadamente o presidente da República, figurar como investigado em procedimento dessa natureza”, disse Barroso. “Mas esse é o preço imposto pelo princípio republicano, um dos fundamentos da Constituição brasileira, ao estabelecer a igualdade de todos perante a lei e exigir transparência na atuação dos agentes públicos”, completou o ministro.

A investigação vai apurar se o decreto que prorrogou as concessões dos portos por 30 anos foi editado com o objetivo de beneficiar a empresa Rodrimar, que atua no Porto de Santos. O Palácio do Planalto foi pego de surpresa. Temer esperava a tão anunciada segunda denúncia de Janot, que seria baseada na delação premiada de Lúcio Funaro. Aparentemente, o procurador-geral aguarda a sessão plenária do Supremo desta quarta-feira, que julgará os recursos de Temer que pedem a paralisação de toda e qualquer ação de Janot enquanto não se esclarecer o caso das relações do empresário Joesley Batista com o ex-procurador Marcelo Miller.

Bateu, levou!
Ontem, o Palácio do Planalto adotou o estilo bateu, levou! Em nota, afirmou que “mais de 60 empresas tiveram seus processos de licitação prorrogados com as condições de investimento e modernização dos terminais e portos brasileiros”. E que o presidente Michel Temer “não teve interferência no debate e acatou as deliberações e aconselhamentos técnicos, sem que houvesse qualquer tipo de pressão política que turvasse todo esse processo.” Pela manhã, já havia sido divulgada uma nota duríssima: “O Estado democrático de direito existe para preservar a integridade do cidadão, para coibir a barbárie da punição sem provas e para evitar toda forma de injustiça. Nas últimas semanas, o Brasil vem assistindo exatamente ao contrário”.

A denúncia é contra Janot: “Garantias individuais estão sendo violentadas, diuturnamente, sem que haja a mínima reação. Chega-se ao ponto de tentar condenar pessoas sem sequer ouvi-las. Portanto, sem se concluir investigação, sem se apurar a verdade, sem verificar a existência de provas reais. E, quando há testemunhos, ignora-se toda a coerência de fatos e das histórias narradas por criminosos renitentes e persistentes. Facínoras roubam do país a verdade. Bandidos constroem versões “por ouvir dizer” a lhes assegurar a impunidade ou alcançar um perdão, mesmo que parcial, por seus inúmeros crimes. Reputações são destroçadas em conversas embebidas em ações clandestinas”.

Luiz Carlos Azedo

Jornalista

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