Nas entrelinhas: Mora na filosofia

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A mais recente polêmica protagonizada pelo presidente Bolsonaro é sobre o ensino de Humanas nas universidades, segundo ele, um desperdício de recursos”

Devido ao suicídio de Getúlio Vargas no ano anterior, um presidente de enorme prestígio popular, o carnaval de 1955 era esperado com muito baixo-astral, mas o que aconteceu foi exatamente o contrário. O povo foi pra rua se divertir e a festa pegou fogo, com muitos sambas e marchinhas de sucesso. Foi o caso de Mora na filosofia, de autoria de Monsueto Menezes com Arnaldo Passos (parceiro de Geraldo Pereira), na voz de Marlene.

Regravado na década de 1970, no LP Transa, por Caetano Veloso, com um arranjo espetacular de Jards Macalé, é ainda hoje considerado um dos mais belos sambas da história da nossa música popular: “Eu vou lhe dar a decisão / Botei na balança/ Você não pesou/ Botei na peneira / Você não passou / Mora na filosofia / Pra que rimar/Amor e dor”. Aquele carnaval foi uma lição de que “a arte existe porque a vida não basta”, como diria mais tarde o poeta Ferreira Gullar.

Judeu de origem sefardita, o antropólogo, sociólogo e filósofo Edgar Morin, cujo verdadeiro sobrenome era Nahoum, foi um herói da Resistência francesa durante a II Guerra Mundial, o que lhe valeu as tarefas de adido ao Estado-maior do Primeiro Exército francês na Alemanha ocupada, em 1945. Sua principal obra são os seis volumes de O método, no qual questiona o fechamento ideológico e paradigmático das ciências. Diante dos problemas complexos que as sociedades contemporâneas enfrentam, dizia, em meados da década de 1970, apenas estudos de caráter interpolitransdisciplinar poderiam resultar em análises satisfatórias de tais complexidades. “Somos complexos”, dizia.

Para Morin, o conhecimento complexo não está limitado à ciência, pois há na literatura, na poesia, nas artes, um profundo conhecimento. Todas as grandes obras de arte possuem um profundo pensamento sobre a vida. Segundo o próprio Morin, devemos romper com a noção de ter as artes de um lado e o pensamento científico do outro. Certo estava Paulo Vanzolini, o dublê de cientista e sambista, autor de Ronda, o hino na noite paulista, entre outras canções antológicas: “De noite eu rondo a cidade / A lhe procurar sem encontrar / No meio de olhares espio / Em todos os bares você não está / Volto pra casa abatida / Desencantada da vida / O sonho alegria me dá / Nele você está”.

Compositor de Volta por cima e Na boca da noite, Vanzolini era zoólogo e foi um dos idealizadores da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp). Com seu trabalho, a USP aumentou a coleção de répteis do seu Museu de Zoologia de cerca de 1,2 mil para 230 mil exemplares. Com o geógrafo Aziz Ab’Saber e com o norte-americano Ernest Williams, desenvolveu a Teoria do Refúgio em suas expedições pela Amazônia.

Ética

A mais recente polêmica protagonizada pelo presidente Jair Bolsonaro é sobre o ensino de filosofia, sociologia e história nas universidades, segundo ele, um desperdício de recursos públicos, diante das deficiências do país em outras áreas, como engenharia, medicina e veterinária. Realmente, existe um subinvestimento nessas áreas, que exigem muito mais infraestrutura para a formação dos alunos. A maioria das faculdades não dispõe de recursos materiais nem humanos do nível, por exemplo, do Instituto Militar de Engenharia (IME), do Instituto Tecnológico da Aeronáutica (ITA), da Engenharia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e da Politécnica da Universidade de São Paulo (USP).

Por ironia, as ideias defendidas por Bolsonaro estão ancoradas na filosofia medieval: a escolástica. Seu expoente foi São Tomás de Aquino, cuja teologia tinha por objetivo provar a existência de Deus ou de seus atributos por modos puramente filosóficos. O “tomismo” conciliou as posições e os métodos de Aristóteles com o cristianismo, tornando-se a corrente filosófica oficial da Igreja Católica na Idade Média, com influência na ética, na teoria política e na metafísica, até o Renascimento e o Iluminismo.

Tomás de Aquino foi o grande teólogo da guerra (justa por uma boa causa, se declarada por uma autoridade legítima e com objetivo de alcançar a paz). Muito criticado por Maquiavel, o “tomismo” (aristotelismo cristão) foi uma ruptura com o pensamento de Platão, aquele filósofo da fábula do homem da caverna, que enxergava as sombras na escuridão, mas quando vê a luz fica cego e, ao voltar pra caverna, não enxerga mais. A essência da civilização é o humanismo.  A ciência sem a ética, a antropologia e a sociologia é um perigo. Exemplos não faltam, como o de Josep Mengele, em Auschwitz.

Luiz Carlos Azedo

Jornalista

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