Pode ser um erro o presidente Lula assumir diretamente a articulação política, como vem sendo anunciado, porque não haveria mais arbitragem, nem a quem reclamar, muito menos a quem culpar
O cientista político Carlos Melo, professor sênior do Insper, é mais um analista da conjuntura a convergir para o diagnóstico de que o modelo de formação de maioria adotado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva pode estar esgotado. Segundo ele, as derrotas na Câmara e a instalação de duas comissões parlamentares de inquérito indesejadas pelo Palácio do Planalto sinalizariam a impossibilidade de formação de uma base parlamentar ampla por meio apenas da formação de um governo de ampla coalizão. “O Executivo ainda perambula sôfrego pelos corredores do Congresso, sem consolidar maioria digna e segura para chamar de sua. Isso é pouco comum já com quase cinco meses de governo”, avalia.
Melo considera um erro o presidente Lula assumir diretamente a articulação política, como vem sendo anunciado, porque não haveria mais arbitragem, nem a quem reclamar, muito menos quem culpar pelas derrotas. Para o cientista político, a dinâmica da formação da maioria passa por transformações. “É possível que nada seja suficiente para deter esse processo. A hipótese a considerar é que há uma crise de modelo e a simples ação direta e pessoal do presidente pode até amenizar o problema, mas não o resolverá”, escreveu no seu Headline Ideias em Foco.
Estariam em curso “mudanças estruturais deletérias”, que podem resultar no colapso do atual modelo de formação de maioria no Congresso. “Ideal como método seria forjar coalizações a partir de grandes projetos de futuro. Com a legitimidade da vitória eleitoral e a mobilização social, os partidos se alinhariam — a maior parte, a favor do governo. Pequenas concessões aqui e acolá dariam feição à coalizão. Instável e dependente de compromissos, a maioria seria política e programática. Por exemplos, são assim a ‘Geringonça’ portuguesa e a atual coalizão alemã.”
“Acontece que não vivemos num mundo ideal”, pondera. O sistema político brasileiro seria avesso a princípios etéreos e a demonstrações de desapego político-material. Ao longo de décadas, houve pactos e arranjos bem realistas e integrados à cultura política nacional, cujo padroeiro, São Francisco de Assis, é operador espiritual do sistema “é dando que se recebe”. Segundo Melo, três modelos distintos de formação de maiorias congressuais foram colocados em prática, sobretudo, a partir da Câmara dos Deputados, com natural acomodação do Senado.
Coalizão sem base
Modelo 1: O governo define a base. Devido ao elevado número de partidos e sem maioria conquistada na eleição, os cargos no governo são compartilhados por meios de dois grandes recortes: bancadas e região. As maiores bancadas são recompensadas com “número de ministérios compatível com sua importância”. Maior a bancada, maior a quantidade de ministérios. Em paralelo, dá-se atenção aos estados atraindo governadores. Isso depende de partidos minimamente coesos: direções partidárias atuantes e lideranças de bancadas representativas e capazes para articular e convencer parlamentares mais ou menos disciplinados pela fidelidade partidária. Na prática, as bancadas substituem as legendas e são estilhaçadas pelos interesses e ações avulsos de seus membros.
Modelo 2: A Lei de Muricy. No governo Bolsonaro, os líderes de partidos menores buscaram o mínimo de aglutinação sob o abrigo do Centrão, um aglomerado de interesses dispersos. A expertise de seus próceres viabiliza recursos que serviram para cooptação individual, não mais coletiva. A emenda individual aprovada no Orçamento da União é hoje o instrumento mais elementar e importante da ação parlamentar. Na Lei de Muricy, onde cada um cuida de si, “quem quer rir tem que fazer rir”. O Executivo acomoda-se, dependente de acertos pouco transparentes feitos no Congresso.
Modelo 3: Híbrido e castrado. É o ajuste entre a composição ministerial e o idealismo programático. A formação de maioria se daria por meio dos ministérios e da ação dos ministros, mas também com relevante papel de uma agenda governamental, com aperfeiçoamentos institucionais, transformações estruturais e reformas adequadas ao desenvolvimento econômico e social. E, claro, com amplo apoio na sociedade. Foi o caso dos governos de Fernando Henrique Cardoso, com o Plano Real, e mesmo de Lula, com a emergência do crescimento econômico e da premência da inclusão social. Fizeram concessões. Cederam cargos e recursos, mas formaram maiorias e colheram frutos na condução do processo político e na aprovação de reformas no Parlamento. Conduziram o atraso, mas não perceberam o que ali se gestava.
Para Carlos Melo, o atual governo arrisca-se num conflito imponderável e numa luta provavelmente inglória. “Ministérios já não interessam”, disse Arthur Lira. E nem interessa aos ministros entregarem-se a toda sorte dos orçamentos secretos que não controlam. Caso clássico é do União Brasil, cujo quinhão de três ministérios não resulta em qualquer compromisso. Menos ainda, votos.”
Lula estaria no meio de um tiroteio. “É alvo tanto daqueles que, romanticamente, defendem certa pureza de princípios, como dos que entendem justamente o contrário. É sutilmente questionado pela burocracia de seu próprio governo, que se opõe ao desperdício de recursos escassos, como também é pressionado por quem os tem como combustível vital de ação política”, avalia o professor do Insper.
Na realidade, sem base organizada, o governo se imobiliza. Os que sonham com a terceira via torcem pelo fracasso de Lula; e as forças de direita que apoiaram Bolsonaro se rearticulam no Congresso.