“Ao se tomar uma decisão, há uma dimensão ética e outra pragmática, muitas vezes tensa, que nem sempre são compatíveis. No longo prazo, a ética prevalece”
Nos anos 50 a.C., ou seja, quando ainda não existia cristianismo, todo esforço civilizatório romano se sustentava no resgate das ideias dos filósofos gregos, do qual Marco Túlio Cícero foi um expoente. Filósofo e advogado, destacou-se como republicano, mas não foi um político bafejado plenamente pela sorte, pois acabou traído por Octaviano, filho de Julio Cezar, ao bater de frente com Marco Antônio. Assassinado em 7 de dezembro de 43 a.C., sua cabeça e suas mãos foram cortadas e expostas no Fórum Romano. Entretanto, seu legado intelectual sobrevive até hoje.
Segundo Cícero, tudo o que é moralmente correto deriva de quatro fontes: a percepção ou desenvolvimento inteligente do que é verdade; a preservação da sociedade organizada, em que todos recebem o que merece e cumprem com suas obrigações; a grandeza e força de um espírito nobre e invencível; ou a ordem e moderação em tudo o que é dito e feito, por meio da temperança e do autocontrole. O presidente Jair Bolsonaro não se enquadra plenamente em nenhum desses quesitos.
Por exemplo, no primeiro quesito, não tem compromisso com a verdade quando trata da tortura nos quartéis durante o regime militar. O caso de Fernando Santa Cruz é paradigmático. Com relação à equidade e igualdade de oportunidades na sociedade, no segundo, privilegia claramente aliados e corporações que o apoiam, como os caminhoneiros, sem falar no caso de nepotismo na indicação do filho, deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), para a embaixada do Brasil em Washington. Com relação à moderação e ao autocontrole, o quarto quesito, dispensam comentários, não fazem o seu estilo de governar.
Talvez se aproxime apenas do espírito invencível, que o levou à Presidência, mas deixa muito a desejar, no terceiro quesito, quanto à nobreza, por causa do comportamento rude e desrespeitoso em relação aos que o contrariam, desde o correligionário que ousa contestá-lo à primeira-ministra alemã Angela Merkel, hoje a principal liderança europeia. Um dia sim, outro também, o presidente da República dá uma declaração polêmica, às vezes escatológica. As pesquisas dirão como a maioria da sociedade encara isso, mas as pessoas educadas, de qualquer orientação política, reagem negativamente, inclusive as que lhe deram o voto nas eleições passadas.
No exterior, então, a repercussão desse estilo de governar é péssima. Nunca um presidente brasileiro teve sua imagem tão associada ao nazismo e ridicularizada por chargistas dos principais veículos de comunicação do mundo. O presidente Donald Trump também é muito criticado por suas declarações xenófobas, racistas e misóginas, mas dispõe de meios de intervenção na política e na economia mundial com os quais não contamos. Mesmo que Bolsonaro queira fazer um piquenique à sombra de Trump na política internacional, sua capacidade de atuação em fóruns multilaterais e nas relações bilaterais sofre restrições absolutamente desnecessárias por causa de suas atitudes e declarações.
Perde-perde
Lembro-me de uma história contada pelo falecido jornalista Walter Fontoura, então diretor da sucursal do jornal O Globo em São Paulo, sobre Roberto Marinho, seu patrão. O criador da TV Globo viajou para a capital paulista e, como sempre, Fontoura foi buscá-lo no Aeroporto de Congonhas. Marinho estava acompanhado de Lili de Carvalho, com quem havia se casado. Fora convidado para um jantar com uma personalidade, mas não conseguia lembrar o seu nome.
“Walter, como é mesmo o nome do rapaz com quem vamos jantar?”, indagou Marinho. “O escritor Vargas Llosa, aquele candidato a presidente do Peru”, respondeu Fontoura. “Não é o que rasgou a carteira de identidade na campanha?”, comentou Marinho. “É ele, sim!”, confirmou o jornalista. Foi o bastante para Roberto Marinho cancelar a agenda com o autor de Conversa na Catedral: “Esse moço é muito mal-educado, não vou jantar com ele, não”. Liberal-radical, polêmico e temperamental, Vargas Llosa perdeu a eleição para Alberto Fujimori, em 1990, mas ganhou o prêmio Nobel de Literatura em 2010. Hoje, vive na Espanha.
Desde os tempos ancestrais, os códigos morais regulam o comportamento humano. Não são imutáveis. Os códigos de Ashoka, na Índia, e Hamurabi, na Babilônia, por exemplo, estão extintos. Todos, porém, buscam uma resposta para a seguinte indagação: o que é agir corretamente? Ao se tomar uma decisão, há uma dimensão ética e outra pragmática, muitas vezes tensa, que nem sempre são compatíveis. No longo prazo, o comportamento ético acaba sendo mais vantajoso.
Na política, como na teoria dos jogos, quando alguém ganha, outros perdem. Jogos de ganhar-perder são chamados de “soma zero”, porque as perdas equilibram os ganhos. Não existe ambiguidade, cada jogador fará o possível para derrotar o outro. Entretanto, há situações em que ninguém ganha, todos perdem. A guerra nuclear, os ataques ao meio ambiente e a recessão econômica, por exemplo, são situações de perde-perde. O presidente Jair Bolsonaro deveria refletir um pouco sobre isso. Muitas de suas decisões vão na direção de resultados nos quais todos perderão. Isso vale para os cortes na educação, a censura no cinema, a venda de armas, os radares das estradas e o desmatamento, para citar apenas alguns exemplos.