O grupo de militares que hoje manda e desmanda no país está perdendo a batalha para os senadores da CPI da Covid, que estão mais sintonizados com a opinião pública
É beabá de qualquer gerenciamento de crise não mentir. A mentira falseia a realidade, escamoteia responsabilidades e, para prosperar, precisa de cúmplices. Por isso, acaba desnudada, como acontece agora com o general de divisão da ativa do Exército Eduardo Pazuello, ex-ministro da Saúde responsável pelo desastre sanitário que vivemos, em coautoria com o presidente Jair Bolsonaro. Em seu depoimento na CPI da Saúde, Pazuello mentiu; agora, está no sal, porque um vídeo gravado em seu gabinete revela que negociou diretamente a compra de vacinas com empresários que faziam, diga- mos, “intermediações onerosas” com o governo. Dos 12 inves- tigados na CPI até agora, por envolvimento em negociações suspeitas, seis são militares.
Pazuello tratou da possibilidade de compra de 30 milhões de doses de CoronaVac sem envolvimento do Instituto Butantan, mesmo sabendo que o governo federal tinha um acordo com o laboratório do governo paulista para o fornecimento de até 100 milhões de unidades da vacina desenvolvida pela farmacêutica chinesa Sinovac. O vídeo obtido pela CPI da Covid foi gravado em 11 de março. Nele, Pazuello explica que o grupo fora tratar da possibilidade de adquirir as vacinas “numa compra direta com o governo chinês”.
Os intermediadores da compra representariam a empresa World Brands Distribuidora, com sede em Itajaí (SC). Pazuello teria recebido a comitiva fora da agenda oficial. Ofereceram 30 milhões de doses por US$ 28 cada uma, com depósito de metade do valor total até 2 dias depois da assinatura do contrato. Ao Butantan, o Ministério da Saúde pagou US$ 10 por dose, quase 2/3 a menos que a suposta oferta feita pelos empresários em março. Ao depor na CPI da Covid, em 20 de maio, Pazuello disse que não participava de negociações com empresas.
O ex-ministro da Saúde faz parte de um grupo de militares que se formou no Comando Militar do Leste, com sede no Rio de Janeiro, à época sob comando do ex-ministro da Defesa Fernando de Azevedo e Silva, demitido do cargo por divergir da politização e manipulação das Forças Armadas por Bolsonaro. Seu chefe de estado-maior era o atual ministro da Defesa, general Braga Netto, que foi interventor na segurança do Rio de Janeiro no governo Michel Temer e manteve absoluto sigilo sobre as investigações que apontaram o envolvimento das milícias com o assassinato da vereadora Marielle Franco, cuja revelação po- deria atrapalhar a eleição de Bolsonaro. O comandante da Vila Militar, a maior unidade do Exército, era o atual secretário-geral da Presidência, general Luiz Eduardo Ramos. Pazuello comandava a Brigada de Paraquedistas. Hoje, o grupo manda no Palácio do Planalto, na Esplanada dos Ministérios e nas Forças Armadas, como uma espécie de guarda pretoriana de Bolsonaro
Neófitos e refratários
Premido pela necessidade de quadros e visando seus propósitos autoritários, Bolsonaro formou um governo de viés bonapartista, com grande número de militares. Hoje, estima-se que sejam em torno de 6,2 mil oficiais nos altos escalões, ocupando funções civis, segundo a pesquisa Militarização da Administração Pública no Brasil: Projeto de Nação ou Projeto de Poder?, de William Nozaki, do Fórum Nacional das Carreiras Públicas de Estado (Fonacate). Como muitos são da ativa, como Pazuello, por exemplo, isso subverte a hierarquia militar e ameaça a democracia, ao envolver as Forças Armadas diretamente na política. Sem falar no desgaste de imagem causado pelo envolvimento de alguns elementos em negócios suspeitos e outras não-conformidades.
Alguém já disse que os homens fazem sua própria história, mas não como querem; não escolhem as circunstâncias, elas lhe foram legadas. Militares são patriotas com aptidões que podem ser muito úteis nas atividades civis, mas não têm a competência dos técnicos e gestores públicos de carreira, formados nos centros de excelência da administração direta e indireta, que são tão patriotas quanto. Afora isso, são pessoas como outras quaisquer, cuja integridade e honradez independem das suas patentes e que podem, sim, na reserva, prestar grande colaboração à administração pública, nas funções para as quais têm formação compatível.
Entretanto, são neófitos ou refratários à política propriamente dita, que não está apenas nas esferas de decisão do governo, mas em todo lugar. É aí que a panelinha de militares que hoje manda e desmanda no país está perdendo a batalha para os senadores da CPI da Covid, que formam um grupo heterogêneo, mas sintonizado com a opinião pública e a maioria da sociedade. A República democrática é um regime de partidos políticos, representativo da sociedade, formado por políticos por vocação; a tutela militar sobre a República é a gênese do autoritarismo corporativista, um regime de casta, incompatível com a Constituição de 1988 e que leva ao fascismo.