Não é justo que uma minoria radicalizada, ocupando as escolas, impeça 270 mil estudantes de fazer as provas do Enem
A comida do Restaurante Central dos Estudantes, no Calabouço, Centro do Rio, era ruim, mas quem tinha indigestão com o prato feito de 50 centavos era o governo militar. Com a União Nacional dos Estudantes (UNE) na clandestinidade desde o golpe de 1964, o restaurante era o quartel-general das lutas estudantis. Funcionavam no local um teatro, uma policlínica e a sede da União Metropolitana de Estudantes (UME). Dez mil jovens frequentavam o restaurante, muitos vindos do interior, a maioria vestibulandos que mal tinham onde cair mortos. Habitavam a Casa dos Estudantes e pensões baratas nos velhos sobrados do Catete, Glória, Lapa, Estácio, Saúde e Gamboa, na decadente região central da cidade.
Após o incêndio da UNE, na Praia do Flamengo, restara o local como reduto estudantil. Fora reaberto pelos militares, que fecharam a policlínica e controlavam o acesso. Mesmo assim, seu enorme salão era tomado por grandes assembleias. Em 1967, o fechamento foi anunciado para dar lugar ao trevo de acesso às pistas do Aterro e, principalmente, ao Aeroporto Santos Dumont.
Para apaziguar os estudantes, o então governador da Guanabara, Negrão de Lima (PTB), eleito pela oposição, propôs a construção de um novo restaurante perto do local. Mas os estudantes não aceitaram. O principal protesto foi comer sem pagar em outros locais. O chamado “pendura” infernizou a vida dos “portugas” que controlavam a maioria dos restaurantes do centro da cidade. Em 28 de março de 1968, porém, a Polícia Militar, comandada pelo Exército, invadiu o Calabouço para abortar uma passeata. O secundarista paraense Edson Luiz, 17 anos, era um dos jovens frequentadores do local e morreu com uma bala no coração.
Os estudantes resgataram o corpo ensanguentado do jovem e o velaram, organizando um dos maiores enterros da história da cidade, que serviria de catalisador da famosa Passeata dos Cem Mil. “Morreu um estudante, poderia ser um filho seu!”, a frase cunhada por Vladimir Palmeira, principal líder estudantil no Rio, eclodiu no longo trajeto da Avenida Rio Branco até o Cemitério São João Batista, em Botafogo. Artistas, professores, jornalistas e a intelectualidade carioca aderiram em peso aos protestos, que receberam apoio logístico dos sindicatos.
“Só o povo armado derruba a ditadura!”, cantavam os mais radicais. “O povo, unido, jamais será vencido!”, respondiam os moderados. A ascensão do movimento, em vez de unir, dividiu a esquerda. Mesmo assim os militares sentiam-se acuados pela oposição e responderam com o AI-5, em 13 de dezembro de 1968, ou seja, com a fascistização do regime. O pretexto era combater a incipiente luta armada dos grupos mais radicais. A memória dessas manifestações, que coincidiram com o Maio de 1968 em Paris e outras cidades, é preservada ainda hoje pelos remanescentes daquela geração de militantes. Ela acalentou pelo menos mais duas levas de líderes estudantis — a que reorganizou a UNE, em 1979, e aqueles que participaram do impeachment do ex-presidente Fernando Collor de Mello, em 1992.
A história não se repete, a não ser como farsa ou como tragédia, mas muitos marmanjos pensam o contrário e apoiam incondicionalmente a radicalização dos jovens estudantes que hoje ocupam mais de 400 escolas em todo o país. O contexto do movimento é completamente diferente: apesar da narrativa do golpe de Estado e do “Fora, Temer”, todos sabem que o Brasil é uma democracia. Mais de 270 mil estudantes estão sendo impedidos de fazer o Exame Nacional do Ensino Médio pelas ocupações, que são uma forma de protesto contra a Medida Provisória que prevê a reforma do ensino médio e a Proposta de Emenda à Constituição 241, que impõe um teto de gastos para o governo. Professores que fazem oposição ao governo põem pilha nos alunos e líderes estudantis ligados ao PCdoB, PT, PSol e PSTU tentam controlar e ampliar o movimento.
“Empoderamento”
Segundo o ministro da Educação, Mendonça Filho, para garantir a segurança e a integridade dos alunos neste fim de semana, os coordenadores do Enem têm autonomia suficiente para cancelar as provas, se presenciarem situações de conflito. Se houver uma nova ocupação em qualquer escola, o estudante que fará a prova no local também será liberado. “A gente não vai pedir para a PM ficar dividindo um corredor humano entre aqueles que querem fazer a prova e aqueles que não querem. Seria um altíssimo risco”, garantiu o ministro, que é novo, mas não é bobo: já foi governador de Pernambuco. No país inteiro, mais de oito milhões de estudantes farão as provas, o que deixa o governo em posição confortável.
Entretanto, a insatisfação dos jovens é grande, em razão das crises ética, política e fiscal, do desemprego e da péssima qualidade do ensino público. Quando a política vira palavrão, o protesto dos jovens é uma aposta no exercício de cidadania. A ocupação das escolas, a pretexto de “empoderamento” (a palavra da moda) dos estudantes, ao tentar impedir a realização do Enem, porém, prejudica os estudantes que dedicaram o ano ao estudo para ter um bom desempenho nas provas. Não é justo que uma minoria radicalizada impeça 270 mil estudantes de fazer o exame. Mais do que uma forma de luta, nessa escala de magnitude, a ocupação é um ato de força de um pequeno grupo contra o direito individual da maioria. Onde está a democracia?