O presidente da República depende não somente do próprio carisma, mas das regras do jogo democrático e do exercício competente da política institucional. Graças a isso, pôde tomar posse
De modo geral, governos populistas são “fulanizados”, ou seja, organizam sua sustentação política em torno de um líder carismático. Quem primeiro caracterizou esse tipo de liderança foi o sociólogo alemão Max Weber, autor de uma palestra célebre, intitulada “A política como vocação”, ao separar poder e dominação. Para ele, o poder é o exercício da vontade sobre os indivíduos; a dominação, a aceitação e a subordinação dos indivíduos ao poder exercido por alguém. Há três formas legítimas de dominação, uma delas é a carismática. As outras duas são a legal (um pacto entre os cidadãos para que eles tenham garantidos os seus direitos) e a tradicional (com base na moral e na religião, característica das sociedades patriarcais).
O que nos interessa mais é a dominação carismática, que depende de a capacidade individual mobilizar a sociedade e comandá-la. Segundo Weber, o líder carismático é uma espécie de força da natureza, exerce uma mística sobre seus seguidores, essencial para que seus liderados nele depositem a esperança de mudança e acreditem nas suas ações. Nesse tipo de dominação, a competência não está em primeiro plano. Por isso, a instabilidade desse tipo de dominação decorre diretamente da capacidade de persuasão do líder. Quando ela falha, o poder entra em crise.
No Brasil, o líder político mais carismático de nossa história republicana foi Getúlio Vargas, que liderou a Revolução de 1930 e se manteve no poder como ditador até 1945. Voltou ao poder pela vontade popular, nas eleições de 1950, com 46,36% dos votos, como candidato à Presidência do PTB, partido que fundou. Naquela época, não havia segundo turno. Essa votação traduziu seu prestígio junto aos trabalhadores assalariados do país, mas também revelou forte a rejeição da classe média e das elites do país. Vargas se matou para não ser deposto, em 24 de agosto de 1954, em meio a uma crise política provocada por um atentado ao jornalista Carlos Lacerda, seu mais figadal adversário político, perpetrado pelo chefe de sua guarda pessoal, Gregório Fortunato.
Depois de Vargas, sem dúvida, a liderança mais carismática é o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o ex-líder metalúrgico, que chegou ao poder em 2002, foi reeleito em 2006 e elegeu sua sucessora em 2010, a ex-presidente Dilma Rousseff. Construiu uma trajetória política com base no sindicalismo, desbancando o herdeiro natural do velho trabalhismo varguista, o ex-governador fluminense Leonel Brizola (PDT), nas eleições de 1989, quando disputou o segundo turno com Fernando Collor de Melo, que foi eleito.
Carisma e poder
Vargas não tinha adversário eleitoral à altura, seu principal desafeto, Carlos Lacerda, no auge de sua popularidade, era uma liderança confinada à antiga Guanabara. Nem de perto tinha o carisma de Jânio Quadros, que se elegeu presidente da República em 1960, porém renunciou ao mandato, no segundo ano de governo, numa crise palaciana provocada pelo seu rompimento com Lacerda. Já o presidente Luiz Inácio Lula da Silva tem um adversário com forte liderança carismática, Jair Bolsonaro. O ex-presidente da República não se reelegeu por uma diferença de apenas 1,8% dos votos válidos. Sua base eleitoral é forte e atuante, com uma extrema direita ideológica que defende abertamente a volta ao regime militar.
Bolsonaro exerce sua liderança com um pé no próprio carisma e o outro na tradição moral e religiosa, ou seja, no velho patriarcado. Para se manter no poder, Lula depende não somente do próprio carisma, mas das regras do jogo democrático e do exercício competente da política institucional. Graças a isso, pôde disputar as eleições e tomar posse, apesar da conspiração golpista que viria a se expressar em 8 de janeiro e está sendo desnudada. Ou seja, Lula depende da dominação racional-legal, que é compartilhada com o Congresso e o Supremo Tribunal Federal.
No momento, a relação do governo Lula com o Congresso é muito volátil. Uma parte dos ministros atua na lógica da dominação carismática, na aba do chapéu do líder, em busca de um programa de ação focado nas políticas sociais, porém com viés estratégico de velhas concepções da esquerda latino-americana. Outra, de centro e centro-direita, luta por espaços no próprio governo e defende um programa de reformas liberais. Para complicar, a maioria do Congresso é conservadora, fisiológica e patrimonialista.
Egressos do governo Bolsonaro, os líderes do chamado Centrão também querem um governo para chamar de seu, como foi o de Bolsonaro. Falta foco ao governo Lula para enfrentar essa situação e viabilizar suas prioridades imediatas, no caso, a aprovação do chamado “arcabouço fiscal” e da reforma tributária. Para isso, é preciso pactuar programaticamente as relações entre as forças que participam da coalizão de governo (uma agenda liberal-social pode ser o caminho) e negociar a implementação dessa agenda com o Congresso (um acordo com o Centrão será inevitável). O carisma de Lula, apenas, não dá conta do recado, seus parceiros políticos querem um governo para chamar de nosso.