“A Constituição garante o direito à vida e à liberdade, mas as mudanças no Código Penal para ajustá-lo aos direitos humanos nunca obtiveram consenso amplo. Há uma disjuntiva com a segurança pública”
O governador eleito do Rio de Janeiro, Wilson Witzel, do PSC, anunciou ontem que já solicitou um levantamento sobre os “snipers” (atiradores de elite) das polícias civil e militar fluminense. Também adiantou que pedirá ao novo presidente eleito, Jair Bolsonaro (PSL), que prorrogue a presença das Foças Armadas no Rio, com um decreto de Garantia da Lei e da Ordem, por mais 10 meses. Juiz federal afastado das funções, Witzel pretende pôr em prática uma polêmica proposta do general Augusto Heleno, futuro ministro da Defesa e um dos integrantes da equipe de transição do novo governo federal: autorizar que integrantes das unidades especiais do Exército atirem primeiro nos traficantes ostensivamente armados de fuzis e outros armentos privativos das Forças Armadas.
“Tinha cinco elementos de fuzil. Ali, se você tem uma operação em que os nossos militares estão autorizados a fazer o abate, todos eles seriam sido eliminados”, disse Witzel, comentado cenas de uma reportagem de tevê que havia flagrado bandidos ostensivamente armados numa favela carioca. Segundo o governador, policiais especializados em disparos precisos e a longa distância também poderão ser colocados em helicópteros para efetuar os disparos. A autorização para o abate de criminosos de fuzil nas ruas, segundo o novo governador, é uma interpretação pessoal do Código Penal. “Prefiro defender policiais no Tribunal do que ir a funeral. O policial será defendido. Se condenado, nós vamos recorrer. Se a sentença for mantida, é um risco que a gente corre. O que me deixa desconfortável é ver bandido com fuzil na rua”, disse.
As declarações geraram protestos da Anistia Internacional, que saiu em defesa da legislação vigente. Mas a discussão está posta desde a intervenção federal na segurança pública fluminense, cuja eficácia é questionada por quem é a favor e contra a presença dos militares no combate aos traficantes. Os primeiros defendem mais segurança jurídica para o Exército atuar, endurecendo as leis; os segundos, são contra a intervenção porque a consideram ineficaz e questionam a capacidade operacional das tropas federais, que empregaram muito pouco as unidades de operações especiais.
A eleição de Jair Bolsonaro pôs na ordem do dia a discussão sobre o endurecimento das penas e o porte de armas. Nas suas primeiras declarações, o novo presidente defendeu a redução da maioridade penal, que está pronta para ser votada na Câmara, segundo o atual presidente da Casa, Rodrigo Maia (DEM-RJ), e a liberação da posse de arma nas zonas rurais, que foi aprovada no plebiscito sobre desarmamento. A Constituição garante o direito à vida e à liberdade, mas as mudanças feitas no Código Penal para ajustá-lo aos direitos humanos nunca obtiveram consenso suficientemente amplo. Criou-se uma disjuntiva entre direitos humanos e segurança pública, na qual movimentos de defesa dos direitos humanos e autoridades policiais sempre se digladiam.
Inimigos
Essa pauta foi uma das prioridades da campanha de Bolsonaro, que conseguiu transformá-la num divisor de águas em razão do aumento da violência e da expansão do tráfico de drogas. Entre os criminalistas, essa discussão também está posta, influenciada pela doutrina jurídica alemã. O jurista Günther Jakobs separa o direito penal do cidadão aplicado ao criminoso comum, que tem as mesmas proteções constitucionais de qualquer cidadão, do chamado “direito penal do inimigo”, que estabelece critérios e punições diferenciadas para indivíduos considerados mais perigosos para a sociedade, como os terroristas, por exemplo. Nesse caso, o Estado poderia suprimir alguns direitos e garantias individuais, o que não é permitido pela nossa Constituição, que foi fortemente influenciada pela doutrina dos direitos humanos.
O jurista Norberto Bobbio foi um dos autores mais reverenciados pelos constituintes, não é à toa que Ulisses Guimarães chamou a Carte de 1988 de “Constituição Cidadã”. Para o mestre italiano, os direitos fundamentais do homem foram duramente conquistados ao longo do processo civilizatório, que passou por uma encruzilhada na II Guerra Mundial. A Declaração Universal dos Direitos Humanos, aprovada pela ONU, foi um estatuto criado para que as democracias pudessem se precaver contra o fascismo, sob o impacto do Holocausto, o assassinato em massa de judeus pelos nazistas, ordenado por Hitler, o ditador alemão. Aprovada em 10 de dezembro de 1948, a declaração influenciou vasta legislação internacional e a Constituição de praticamente todos os países democráticos. O nosso não é exceção.
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