A forma como o eixo da guerra da Rússia contra a Ucrânia se internacionalizou e deslocou-se do aspecto militar para o político e econômico-financeiro é uma advertência à China
Até a invasão da Ucrânia pela Rússia, a geopolítica mundial ainda era uma herança da Conferência de Yalta, na Crimeia, às margens do Mar Negro, de 4 a 11 de fevereiro de 1945, na qual o presidente americano Franklin Roosevelt, o premiê britânico Winston Churchill e o líder soviético Joseph Stálin decidiram o destino da Europa no pós-Segunda Guerra Mundial. A guerra acabou em 9 de maio, quando as tropas alemãs foram vencidas, em Berlim, pela extinta União Soviética. E quando o Japão se rendeu aos Estados Unidos, após os ataques nucleares a Hiroshima e Nagasaki, em 6 e 9 de agosto, respectivamente.
Stalin desejava reerguer a economia da URSS e o reconhecimento da sua influência na Europa Oriental. Além disso, queria dividir a Alemanha. Churchill concordava com a partilha do território alemão e pretendia resgatar a influência do Império Britânico no mundo. Roosevelt visava a criação das Nações Unidas (ONU) e pressionava a União Soviética a entrar em guerra com o Japão. A pedido de Stálin, as fronteiras da Polônia seriam movidas, ampliando as terras da União Soviética. Os países bálticos (Estônia, Letônia e Lituânia) também passariam ao controle comunista.
Esse desenho da Europa foi “descongelado” com a queda do Muro de Berlim e o fim da antiga União Soviética, para usar uma expressão do filosofo alemão Jürgen Habermas. O fio da história foi retomado com seus velhos conflitos étnicos e ressentimentos nacionais, que já haviam provocado a Primeira Guerra Mundial. A contínua expansão da Otan em direção às fronteiras da Federação Russa e a ambição de Vladimir Putin, que deseja resgatar as esferas de influência do velho Império czarista, resultaram numa guerra que altera toda a lógica da globalização até agora. Mesmo que se chegue a um acordo de paz na Ucrânia, a ordem mundial não será a mesma.
Sob a presidência de Joe Biden, a política externa dos Estados Unidos se orienta pela doutrina do sociólogo Immanuel Wallerstein, que confronta as velhas teorias realista e liberal de projeção de poder. Na lógica do ex-secretário de Estado Henry Kissinger, por exemplo, a Ucrânia deveria ser neutra. Na teoria de Wallerstein, já estaria incorporada ao “sistema mundo” liderado pelos Estados Unidos, como a Polônia e outras ex-repúblicas comunistas do Leste Europeu.
Impérios mundiais e economias mundo são coisas diferentes. Um império mundial (tal como o Império romano, a dinastia Han na China) é uma grande estrutura burocrática com um único centro político e uma divisão de trabalho central, mas culturas múltiplas. Uma economia-mundo é uma grande divisão de trabalho, com centros políticos múltiplos e culturas múltiplas. Enquanto os impérios mundiais caracterizavam-se pela centralização política, as economias-mundo se caracterizam por múltiplos centros políticos, em constante e complexa luta pela hegemonia do sistema
Sistema-mundo
O sistema mundial moderno teve suas origens no século dezesseis, em regiões da Europa e das Américas. Deslocou seu eixo hegemônico, sucessivamente, de Gênova, Holanda e Inglaterra para os Estados Unidos. É, e sempre foi, uma economia-mundo, capitalista. Após o fim da guerra fria, com a sua globalização, as grandes corporações passaram a ter um papel decisivo na política internacional, sobretudo na articulação da agenda das grandes potências e das organizações e agências internacionais. As agendas ambiental, social e de governança de Davos são o exemplo mais atual.
Desde então, a hegemonia da política mundial já não depende apenas do Leviatã, como opera Putin, mas do papel da liderança política junto à opinião pública, pela capacidade de conduzir a sociedade em uma direção que extrapola aos interesses do grupo dominante, mas também serve ao interesse mais geral dos grupos subalternos. É o que explicaria, por exemplo, a liderança adquirida pelo presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, na política mundial. Na velha ótica liberal realista, seria um maluco que arrastou seu país para o desastre ao desafiar Putin; na nova ordem mundial, ao lado de Biden e do primeiro-ministro do Reino Unido, Boris Jonhson, lidera o Ocidente na adoção de sanções contra Rússia e até ofusca seus colegas da União Europeia.
Outro aspecto da conjuntura é crise de hegemonia nos ciclos sistêmicos de acumulação capitalista, que opõe os Estados Unidos à China, muito mais do que à Rússia, que está sendo excluída das cadeias globais de produção e comércio de forma inédita, apesar de seu inegável poderio bélico. A forma como o eixo da guerra da Rússia contra a Ucrânia se internacionalizou e deslocou-se do aspecto militar para o político e econômico-financeiro é uma advertência à China. A dura conversa entre Biden e o presidente chinês Xi Jinping, na sexta-feira, só confirma que estamos no limiar de uma nova ordem mundial, mais democrática, que pode ter um ou dois sistemas, opondo o Ocidente à Eurásia. Como diria Wallerstein, um sistema-mundo não é o sistema do mundo; frequentemente, tem sido localizado numa área menor que o globo inteiro.