Quando a discussão no Congresso se desloca da reforma tributária para a polêmica sobre o déficit zero e o novo arcabouço fiscal, o governo perde o foco no problema estrutural
O nome já diz: impostos. Ninguém os paga por livre e espontânea vontade. Na economia clássica, o ícone liberal Adam Smith resumiu a receita da boa tributação: a tríade justiça, simplicidade e neutralidade. Quando todos pagam, do mais pobre ao mais rico, na proporção de sua capacidade; quando é fácil de calcular e pagar; e quando não altera a competitividade das empresas e o comportamento do consumidor, o sistema tributário é eficiente e justo. Entretanto, aqui no Brasil é um labirinto cheio de armadilhas, para produtores e consumidores, criado para manter privilégios e subsidiar a incompetência.
Se agruparmos as atividades econômicas em nove setores — agropecuária, indústria extrativa, indústria da transformação, construção civil, serviços sofisticados (empresas, financeiros e imobiliários) e serviços não sofisticados — o Brasil emprega muita gente em agropecuária e serviços não sofisticados, onde a produtividade do trabalho e sua remuneração tendem a ser baixa. Além de ocuparmos o maior número de trabalhadores em setores de baixa produtividade, os empregos industriais brasileiros apresentam baixa performance em termos de ganhos de produtividade globais.
O sistema tributário é uma das causas da baixa competitividade e perda de complexidade industrial do Brasil, que está se desindustrialização rapidamente. Muito se fala em desonerar as empresas dos encargos trabalhistas, que financiam o desemprego e as aposentadorias, mas pouco se discute as consequências perversas dos subsídios e privilégios concedidos às empresas brasileiras. A ideia de integração mutuamente vantajosa à economia mundial somente fica de pé se nossos produtos e serviços forem capazes de competir interna e externamente. A competitividade adquirida com reservas de mercado, a médio e longo prazos, jogam a economia para baixo.
Sendo assim, opta-se, mais uma vez, pelo imediatismo. A conta entre arrecadação e gasto público não fecha, o que gera inflação e juros altos. O baixo teto de crescimento que decorre dessa visão é mais prejudicial à economia do que supostamente seria o enquadramento da capacidade de investimento do governo na arrecadação real como propõe o novo arcabouço fiscal.
Modelo atávico
A reforma tributária proposta pelo projeto Bernardo Appy, já aprovada na Câmara e em discussão no Senado, avança na questão da simplificação dos impostos, mas deixa muito a desejar em termos de justiça e neutralidade, por causa das mudanças que estão sendo aprovadas. Nossa elite política reproduz o velho modelo de subsídios às nossas indústrias e serviços, para compensar a baixa produtividade e manter margens de lucro vantajosas, sem a devida contrapartida de eficiência e qualidade.
Dez novas exceções foram introduzidas na reforma tributária pelo senador Eduardo Braga (MDB-AM), seu relator no Senado, para ampliar os privilégios tributários já aprovados na Câmara, que beneficiam vários setores da economia. No saneamento, é uma contradição com o discurso de que o setor privado tem mais condições de investimento e capacidade de gerenciamento do que o setor público. Se é assim, como de fato pode ser, por que o regime diferenciado? O resultado dos privilégios para os setores beneficiados com 40% de desconto no Imposto sobre Valor Agregado (IVA) é um aumento geral da alíquota de impostos, que originalmente estava prevista em 25,45% e deve chegar a 27%; com as novas exceções, chegará a 27,56%. Ou seja, todos os consumidores financiarão a baixa produtividade dos beneficiados.
Saneamento, concessão de rodovias, infraestrutura compartilhada de telecomunicações, agência de viagem, turismo, transporte rodoviário de passageiros intermunicipal e interestadual, ferroviário, hidroviário e aéreo estão no rol dos setores com regime diferenciado. Pode-se argumentar que serão objeto de legislação específica, mas sabemos que têm lobbies calejados e alguns representantes influentes no Congresso. Além disso, a concorrência que compensa a baixa produtividade com mais exploração do trabalho impacta o poder de consumo e, consequentemente, a própria lucratividade das empresas. E leva a baixas taxas de crescimento e menos complexidade industrial.
Até agora, a economia vinha numa trajetória positiva, tanto que o Banco Central, mesmo com a polêmica sobre o déficit zero, manteve a linha de redução da taxa de juros na última reunião do Copom: a Selic caiu de 12,75% para 12,25%. Entretanto, a projeção para a taxa de juros no fim de 2024 já aumentou de 9% para 9,25%, podendo chegar a 10%. Mais 1% na taxa de juros tem enorme impacto na arrecadação e nas despesas do governo. O governo Lula se ajudaria mais se focasse seu empenho político na aprovação da melhor reforma tributária possível, o que pode de fato aumentar a arrecadação, e menos na desmoralização da meta fiscal de déficit zero.
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