A tese da esquerda brasileira era de que o Brasil não poderia se desenvolver com latifúndio e dominação do capital estrangeiro. O que aconteceu foi o contrário
Há mais de 100 anos, a reforma agrária é uma ideia-força para a esquerda brasileira. Demorou para ter apoio popular e, a rigor, nunca se completou. É uma das faces do atraso brasileiro e nosssa iniquidade social. Em Portugal, a reforma agrária aconteceu na Revolução do Mestre de Avis (1383-1385), coroado João I. Foi uma revolução burguesa, que deu origem ao primeiro Estado Nação da Europa. A vitória da burguesia comercial e a reforma agrária impulsionaram tremendamente as indústrias naval e vinícola de Portugal, sem as quais não teriam ocorrido as grandes navegações.
No Brasil, a primeira oportunidade perdida foi na Independência, em 1822. José Bonifácio, em Apontamentos sobre as sesmarias, defendeu as pequenas propriedades, e a distribuição de terras aos indígenas, ex-escravos e colonos portugueses chegou a ser proposta por ele, para as “terras baldias”, numa estratégia de conciliação com os senhores de escravos. A prioridade dada ao arranjo institucional, no qual a monarquia foi a chave para manter a integridade territorial, e capacidade de fazer inimigos de Bonifácio inviabilizaram suas propostas, mesmo não havendo abolição.
A segunda oportunidade foi perdida da Abolição propriamente dita, em 1888, à Proclamação da República, em 1889. No primeiro caso, o Marques de Ouro Preto, em vez de indenizar os ex-escravos, indenizou os escravocratas. Seu projeto Auxílio à Lavoura distribuiu aos ex-senhores de escravos 86 mil contos de réis, o equivalente a um quarto do Orçamento do Império, emprestado pela Casa Rothschild, de Londres, para pagamento em 50 anos e garantia de juros do governo brasileiro. Na segunda oportunidade, Rui Barbosa, ministro da Fazenda de 1890 a 1891, revogou a legislação do Auxílio à Lavoura, para criar um Banco Hipotecário e tributar as propriedades, mas foi derrotado pela elite agrária.
Na Revolução de 1930, não foi muito diferente. Getúlio Vargas chegou ao poder confrontando as elites agrárias de São Paulo e Minas, mas não levou adiante a reforma agrária. Rapidamente se recompôs com esses setores e limitou seu ímpeto reformista a algumas colônias agrícolas e assentamentos em terras da União. Em contrapartida, a legislação trabalhista acirrou os conflitos no campo. Os antigos colonos e meeiros foram expulsos das fazendas, que passaram a recorrer ao trabalho temporário de boias frias nas culturas de algodão, café, cana de açúcar e laranja.
Esse processo contribuiu para a radicalização política que nos levou ao golpe de 1964. Naquele ano, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, a população era de 79,8 milhões de pessoas. O número dos que viviam em área rural alcançava 33 milhões. A produção agrícola, porém, não atendia todo o mercado interno. O latifúndio improdutivo ocupava grandes extensões de terras. Os trabalhadores rurais eram mal remunerados e viviam situação de penúria. As ligas camponesas e sindicatos de trabalhadores rurais pressionavam João Goulart e queriam uma reforma agrária na “lei ou na marra”. Jango anunciou a desapropriação de terras às margens de ferrovias, estradas e açudes federais no famoso comício da Central do Brasil, no Rio, em 13 de março de 1964, para 200 mil pessoas. Seu governo acabou ali. Em 31 de março, foi deposto pelos militares com amplo apoio do político e social.
Ideologia e realidade
Por ironia, o Estatuto da Terra, aprovado pelo presidente Castelo Branco durante o regime militar, tornou-se a grande bandeira de organização dos sindicatos rurais, que obtiveram muitas conquistas. A lei dizia que o Estado tinha a obrigação de garantir a terra para quem nela vive e trabalha. Definia o latifúndio improdutivo passível de desapropriação e o modulo rural mínimo para a produção. Entretanto, foi no governo de Fernando Henrique Cardoso, sob comando do então ministro da Reforma Agrária, Raul Jungmann, o maior avanço: entre 1995 e 1998, foram desapropriados 7 milhões de hectares, como 287.539 famílias assentadas em quatro anos. No governo Sarney, 4 milhões de hectares já haviam sido desapropriados.
Nada disso consta das provas do Enem sobre a questão agrária. Três questões preconceituosas sobre o agronegócio e a revolução tecnológica na prova voltaram a envenenar as relações entre o setor agrícola e o governo Lula. A rigor, o ministro da Educação, Camilo Santana, não tem nada a ver com o caso, porque a prova é feita por um colegiado de professores, com autonomia de cátedra. Mas é quem pagará a conta. Grosso modo, condenam o capitalismo no campo. É inacreditável, porque a reforma agrária é uma bandeira capitalista, democrático-burguesa, pois se trata de redistribuir a propriedade da terra, e não de coletivização forçada.
O pior é não compreender a importância e o papel do agronegócio no desenvolvimento. Isso não significa endossar o uso de agrotóxico, o reacionarismo ruralista e a violência no campo, a grilagem de terra, a derrubada da floresta para pasto e plantação de soja, o contrabando de madeira etc. A tese da esquerda brasileira, nas décadas de 1950 e 1960, era de que o Brasil não poderia se desenvolver com latifúndio e dominação do capital estrangeiro. O que aconteceu foi o contrário desse dogma: graças a isso, o país se industrializou e as grandes propriedades deram origem ao nosso agronegócio altamente produtivo.
Hoje, o Brasil é o quarto maior produtor agrícola do mundo, atrás apenas da China, da Índia e dos Estados Unidos; lidera a produção de café, carne bovina, frango in natura, celulose, soja, açúcar e, agora, milho. Em breve, será o maior produtor de algodão. Tudo o que o governo Lula não precisava era essa confusão provocada por três questões do Enem pautadas pelo esquerdismo anacrônico, e não pela realidade. Como vimos na história recente, reforma agrária e agronegócio não são coisas incompatíveis.