Ser intérprete do sentimento visceralmente comprometido com a ordem democrática que lhe garantiu a vitória no segundo turno é o maior ativo político de que Lula dispõe
A plena inserção do Brasil no ocidente democrático é uma conquista que está para completar 40 anos, pois seu ponto de clivagem é a eleição de Tancredo Neves, em 1985, num colégio eleitoral criado pelo regime militar com objetivo de institucionalizar seu modelo autoritário. Naquele momento, conservadores, liberais, social-democratas, trabalhistas e comunistas se aliaram para restabelecer a ordem democrática. Coube ao ex-presidente José Sarney, que assumira o poder com a morte de Tancredo, convocar uma Constituinte e garantir as liberdades para possibilitar a transição política bem-sucedida que resultou na democracia de massas que temos hoje — com eleições diretas, livres e limpas em todos os níveis.
No Brasil, a esquerda estava fraturada em relação à eleição de Tancredo Neves, como de resto ocorrera durante todo o regime militar. Uma parte minoritária ainda acreditava na possibilidade de a derrota dos militares se confundir com uma revolução socialista e via com desconfiança a candidatura de Tancredo Neves. Essa visão ainda era hegemônica no Partido dos Trabalhadores, que expulsou os três deputados que votaram a favor da eleição de Tancredo: Aírton Soares (SP), Bete Mendes (SP) e José Eudes (RJ).
Líder máximo do PT, Lula disputaria todas as eleições presidenciais (venceria em 2002 e 2006), com exceção das de 2010, quando deixou o poder, e de 2018, quando foi impedido de concorrer contra Jair Bolsonaro, que foi eleito presidente da República. Naquela ocasião, tudo indicava que a alternância de poder e o direito ao dissenso, características de um regime democrático pleno, estavam consolidados e que o governo de extrema direita de Jair Bolsonaro seria uma inflexão pendular, que se acomodaria às contingências ditadas pelo establishment político conservador e pelas elites econômicas do país. Isso parecia se comprovar nas eleições de 2022, quando Lula voltou ao poder, mas não foi o que ocorreu.
O velho golpismo que marca nossa história republicana ainda estava vivo e encarnado no projeto autoritário de Bolsonaro, que militarizou seu governo e, mais tarde, após perder as eleições, tentaria dar um golpe de Estado, o que quase se consumou em 8 de janeiro de 2023. Falou mais alto o sentimento de universalidade democrática, que predominou nas demais instituições políticas do país. Não só no Supremo Tribunal Federal (STF) e no Congresso Nacional, mas também nas próprias Forças Armadas, onde prevaleceram o respeito à Constituição, à hierarquia e à disciplina.
O governo Lula, eleito por estreita margem e fruto de uma frente de esquerda que hegemonizou o campo da oposição, beneficiou-se do apoio de setores social-democratas, social-liberais, liberais e conservadores comprometidos com a democracia no segundo turno, ainda que a maior parte dos eleitores desses segmentos tenha sido abduzida pela polarização direita versus esquerda.
Ativo político
Graças a isso, foi possível barrar o projeto autoritário de Bolsonaro. Ser intérprete do sentimento visceralmente comprometido com a ordem democrática que caracteriza esses setores é o maior ativo político de que Lula dispõe. Tanto do ponto de vista da política nacional, como no âmbito das relações internacionais. Entretanto, a posição da cúpula do PT, de claro apoio à transformação do regime bolivariano de Nicolás Maduro numa ditadura, mostra uma visão instrumental da democracia. E a dubiedade com que o presidente Lula se conduziu-se nesta crise venezuelana parece endossar essa visão.
Na sexta-feira, o governo brasileiro não assinou o comunicado que refuta o resultado eleitoral na Venezuela, a pretexto de não concordar com o tom e com o teor do texto. O comunicado é assinado por Estados Unidos, União Europeia e mais 10 países da América Latina (Argentina, Costa Rica, Chile, Equador, Guatemala, Panamá, Paraguai, Peru, República Dominicana e Uruguai), além da OEA (Organização dos Estados Americanos). O texto afirma o que Lula, Celso Amorim e até o PT também sabem: a eleição na Venezuela foi fraudada.
O Conselho Nacional Eleitoral (CNE, a Justiça eleitoral do país), já havia declarado a vitória de Maduro. Agora, o TSJ respaldou a decisão. Porém, o verdadeiro vencedor da eleição foi o oposicionista Edmundo González, que divulgou as cópias das atas da maioria das seções eleitorais. O Brasil alega que ainda dialoga com Maduro e a oposição venezuelana e, por isso, não endossou o documento, mas de que adianta? Maduro não recuará, a Venezuela ingressa num novo eixo geopolítico, na órbita da Rússia, a China, Cuba, Coreia do Norte e Irã. Descolou-se do ocidente democrático.
A posição do PT e as relações históricas de Lula com Maduro põem um ponto de interrogação nas verdadeiras intenções do petista. À luz da nossa tradição diplomática, o Brasil não deve romper relações com a Venezuela, mas reconhecer a vitória do ditador venezuelano é outra história. Maduro segue a trilha de Daniel Ortega, outro aliado histórico de Lula e do PT, mas que expulsou o embaixador brasileiro, o que também deverá ocorrer na Venezuela se Lula não legitimar a vitória do presidente venezuelano. Não reconhecer nem refutar o resultado eleitoral é uma ambiguidade que fragiliza a autoridade de Lula, interna e externamente. Não se tapa o sol com peneira.
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