Nas entrelinhas: Dos delitos e das penas, as razões da saidinha

compartilhe

O fim das saidinhas é uma vingança coletiva contra os prisioneiros com bom comportamento, em retaliação aos detentos que dela se aproveitavam para fugir

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva vetou, na nova lei das saidinhas, o trecho que impedia a saída de presos do regime semiaberto para visitar a família. No regime semiaberto, os presos dormem na prisão e saem para trabalhar. O fim da saidinha foi aprovada pelo Congresso na onda de endurecimento das penas para combater a violência. É uma bandeira da oposição ao governo, liderada pela chamada bancada da bala, da qual fez parte o ex-presidente Jair Bolsonaro, desde o plebiscito sobre o desarmamento, em 2005.

A defesa do endurecimento das penas — no limite, a adoção da pena de morte — é uma espécie de populismo penal, que vem sendo combatido desde o século XVIII, mas que ainda conta com muito apoio na sociedade. É um senso comum que oferece uma solução simples e radical para um problema cada vez mais complexo: a atuação de organizações criminosas e a delinquência difusa, que brota na sociedade em razão das desigualdades sociais, do desemprego e da baixíssima escolaridade.

O milanês Cesare Beccaria, marquês de Beccaria, considerado o pai do moderno direito penal, foi o primeiro grande criminalista a se insurgir contra os métodos medievais de punição. Educado por jesuítas, estudou literatura e matemática em Paris, em meados do século, e sofreu a influência dos enciclopedistas, principalmente Voltaire, Rousseau e Montesquieu. De volta a Milão, fundou uma sociedade iluminista e passou a escrever para o jornal Il Café, que circulou nos anos de 1764 e 1765.

Na época, as penas constituíam uma espécie de vingança coletiva, o que levava à aplicação de punições com consequências piores do que os males produzidos: torturas, penas de morte, prisões desumanas, banimentos, na maioria das vezes, com base em acusações secretas.

O fim das saidinhas, aprovado pelo Congresso, é uma espécie de vingança coletiva contra os prisioneiros com bom comportamento, em retaliação aos detentos que dela se aproveitavam para fugir da prisão e/ou cometer outros crimes. Na saída temporária do Natal passado, que beneficiou pouco mais de 52 mil internos, 95% (49 mil) voltaram às cadeias dentro do período estipulado; outros 5% (cerca de 2,6 mil), não.

Beccaria escreveu uma obra seminal: Dei Delitti e delle Pene (Dos delitos e das penas), fruto de suas discussões com os irmãos Pietro e Alessandro Verri. Para evitar perseguições, o livro foi impresso em Livorno, em 1764, anonimamente. Com razão e sentimento, é um libelo contra os julgamentos secretos, a tortura, a confiscação, as penas infamantes, a desigualdade do castigo e os suplícios.

Separou a justiça divina e a justiça humana, os pecados e os delitos, condenou o direito de vingança e tomou por base a utilidade social para estabelecer o direito de punir. Classificou como inútil a pena de morte, assim como defendeu a separação do Poder Judiciário e do Poder Legislativo. Beccaria foi acusado de heresia e sofreu forte perseguição em Milão. Entretanto, sua influência se espalhou pela Europa.

Presídios

A imperatriz Maria Teresa da Áustria aboliu a tortura em 1776. Catarina II adotou seus conceitos no Código Criminal Russo de 1776. Em 1786, Leopoldo de Toscana adotou as reformas defendidas por Beccaria; Frederico, o Grande, na Prússia, abraçou muitos de seus princípios. Quatro são atualíssimos: a inevitabilidade da punição; a punição da mesma natureza e gravidade para o mesmo crime; a pena proporcional à gravidade da ofensa ou dano; e a celeridade do julgamento, resguardado o direito de defesa.

Segundo agentes penitenciários, a saidinha estimula o bom comportamento dos detentos e reduz a tensão nos presídios, que há mais de 20 anos convivem com um grande deficit de vagas. No ano 2000, havia 232.755 presos em todo o país, para apenas 135.710 vagas. Segundo o Departamento Penitenciário Nacional (Depen) e o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen), até junho de 2019, a superlotação era de 461 mil vagas para quase 800 mil detentos.

A população prisional cresce a um ritmo de 8,3% ao ano. Deve chegar a 1,5 milhão em 2025, atrás apenas dos Estados Unidos e da China. Do total da população carcerária, 41,5% (337.126) são presos provisórios, que ainda estão à espera de julgamento. E ainda há 366,5 mil mandados de prisão pendentes de cumprimento.

De junho a dezembro de 2019, 49,88% dos presos se declaram pardos; 32,29%, brancos; 16,81%, negros; 0,8%, amarelo; e 0,21, indígena. Cerca de 317,5 mil não completaram o ensino fundamental e 101, 7 mil, o ensino médio. São analfabetos 18,7 mil, enquanto 4,1 mil têm curso superior. Essa é a base social das facções criminosas que controlam os presídios. É dentro do sistema prisional que elas se organizam.

Colunas anteriores no Blog do Azedo: https://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/

Luiz Carlos Azedo

Jornalista

Posts recentes

Master, ameaça sistêmica à superestrutura financeira e jurídica do país

Ao entrar no coração de uma crise bancária ainda em investigação, o STF corre o…

15 horas atrás

Lula ganha de Motta presente de Natal de R$ 20 bi em aumento de receita

No fundo, a reaproximação é um pacto de sobrevivência para 2026. Motta precisa operar a…

2 dias atrás

De olho nas emendas parlamentares, Flávio Dino vira “caçador de jabutis”

Dino suspendeu os efeitos do dispositivo legal que exumava as emendas secretas. O dispositivo previa…

3 dias atrás

Orçamento sob medida para as eleições: R$ 61 bi em emendas parlamentares

Na prática, o que se vê é a substituição do planejamento público por uma lógica…

6 dias atrás

Supostos negócios de Lulinha com Careca do INSS são dor de cabeça para Lula

Estava tudo sob controle na CPMI, até aparecerem indícios de que Antônio Carlos Camilo Antunes,…

1 semana atrás