O mundo mudou, as cadeias de valor da globalização estão sendo reestruturadas, o país está com um pé em cada canoa na política internacional e a nossa “sociedade industrial”, que deu origem ao PT, não existe mais
O que ainda existe de comum entre Getúlio Vargas e o presidente Luiz Inácio Lula da Silva? Uma visão na qual a centralidade da política está na ação do Estado e não na sociedade civil. Ambos privilegiaram o contato direto com o povo. E não a mediação da sociedade civil, que deixou de ser uma trincheira da esquerda, como correu durante o regime militar. Suas agências foram gradativamente controladas por setores de direita, inclusive em setores onde predominavam atores liberais, como a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e o Conselho Federal de Medicina (CFM).
Lula foi um dirigente sindical pragmático e realista. Embora dissesse que a CLT era o AI-5 dos trabalhadores, não embarcou no mito fundador do Partido dos Trabalhadores, que era emancipar o proletariado brasileiro da tutela da Consolidação da Legislação Trabalhista (CLT), cuja origem está no Estado Novo e na Carta del Lavoro, do ditador Benedito Mussolini, criador do fascismo.
O herdeiro político de Vargas e do trabalhismo era Leonel Brizola, o PT nasceu a partir da crítica visceral ao populismo. Entretanto, a partir das eleições de 1989, quando Lula foi para o segundo turno das eleições contra Fernando Collor de Mello e Brizola ficou fora da disputa final, houve um processo gradativo de adesão do PT às teses nacional desenvolvimentistas de Vargas. Bem como a construção de uma estratégia de ocupação dos sindicatos que deslocou desse eixo trabalhistas e comunistas, por meio de uma tática de luta e negociação.
O PT radicalizava as formas de luta e privilegiava as greves, porém, ao mesmo tempo, buscava a negociação com o patronato, sem a mediação da Justiça trabalhista, como ainda faziam os dirigentes sindicais trabalhistas e comunistas que sobreviveram ao grande expurgo promovido nos sindicatos pelo regime militar. Assim, se tornou o maior partido de esquerda no Brasil e, deste então, manteve-se como alternativa de poder, graças à penetração nos sindicatos, nas universidades e no mundo artístico e cultural.
Entretanto, nada disso seria possível sem a liderança carismática de Lula, que disputou e perdeu mais duas eleições presidenciais, para Fernando Henrique Cardoso (1994 e 1998), até derrotar José Serra (PSDB), em 2002. Vai aqui um parêntese: a derrota de Serra interrompeu um projeto político de ruptura com a Era Vargas e, com isso, a construção de uma elite política, intelectual e empresarial capaz de liderar um novo modelo de desenvolvimento, democrático e integrado à economia mundial em bases soberanas, como imaginavam os tucanos.
O processo político real ultrapassou o ideário dos intelectuais fundadores do PT, que tinham em comum com o PSDB a negação da Era Vargas; talvez o mesmo tenha ocorrido com o PSDB, mas essa é outra história. O pragmatismo levou o PT a defender a herança de Getúlio Vargas: o Estado como indutor da economia e provedor dos mais pobres. Reconhece na prática o populismo como uma via de incorporação dos trabalhadores à vida nacional; os sindicatos foram atores da democratização do país ao longo da história. Curiosamente, apesar de excomungado pelos udenistas, o modelo de industrialização adotado por Vargas teve seu auge no governo do general Ernesto Geisel.
Modelo econômico
Os dois primeiros governos de Lula foram exitosos porque manteve a política de estabilidade monetária herdada do governo Fernando Henrique Cardoso e aproveitou expansão da economia mundial, além de se beneficiar do “bônus demográfico”, que possibilitaram taxas maiores de crescimento e uma política de transferência de renda que retirou 12 milhões de famílias da pobreza absoluta (Bolsa Família). Quando a taxa de natalidade e a de mortalidade tem queda e a expectativa de vida aumenta, muda a relação entre a população economicamente ativa e aposentados e o número de dependentes.
No final do governo Lula e nos de Dilma Rousseff, cujo segundo mandato foi interrompido pelo impeachment, houve uma mudança de política econômica, com ênfase nos investimentos em infraestrutura, sem que o país tivesse poupança e capacidade de captação de investimentos em níveis sustentáveis. Inflação e déficit fiscal acabaram provocando um colapso da política econômica, o que inviabilizou o projeto de “nova matriz econômica”, o modelo proposto pelo PT para desenvolver a economia que retomava o nacional desenvolvimentismo varguista.
Sinceramente, não sei como caracterizar a política econômica do governo Jair Bolsonaro, que começou com um discurso liberal e terminou com um déficit fiscal que o contradiz. Mas o que nos interessa aqui é o estado da arte. O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, vive entre a realidade fiscal imposta pela economia e uma recidiva da narrativa nacional desenvolvimentista. É como se estivesse diante de uma encruzilhada do passado. A diferença é que o mundo mudou, as cadeias de valor da globalização estão sendo reestruturadas, o país está com um pé em cada canoa na política internacional e a nossa “sociedade industrial”, que deu origem ao PT, não existe mais. Lula precisa repensar seu projeto de país à luz da nova realidade.
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