Nas entrelinhas: Diamantes são eternos, mas não são para sempre

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Bolsonaro está enrolado com joias sauditas desde quando a Receita Federal apreendeu um conjunto reluzente de diamantes avaliado em R$ 16 milhões na Alfândega de Guarulhos

A passagem à tecnologia da informação, que viria a se consumar décadas depois, é o pano de fundo do filme Os Diamantes são Eternos (Diamonds Are Forever), estrelado por Sean Connery, o James Bond de maior sucesso da série 007 em todos os tempos. Em 1971, o famoso agente de espionagem britânico entra em ação contra seu velho inimigo Ernst Blofeld (Charles Gray), líder da organização Spectre, que ameaça o mundo com uma arma nuclear espacial cujos componentes principais são dezenas de diamantes roubados.
Entretanto, apesar das cenas de ação eletrizantes, é um dos piores filmes da série, porque o roteiro não consegue resolver a conexão entre as novas tecnologias e o clima de guerra fria da época, ao juntar contrabando de armas e de diamantes na rota África do Sul, Holanda e Estados Unidos. Locações, fotografia e filmagem garantem as sequências e os planos, mas o contexto é completamente distópico. Além disso, a misoginia e o racismo presentes no filme seriam inadmissíveis nos dias de hoje. O melhor do filme é título, cuja tradução literal seria “Diamantes são para sempre”.

Não é o caso dos diamantes que o ex-presidente Jair Bolsonaro ganhou de presente na Arábia Saudita, não se sabe direito de quem e por quê. Ontem, a defesa de Bolsonaro anunciou que o ex-presidente da República vai entregar, ao Tribunal de Contas da União (TCU) o conjunto de joias que levou para casa. Assim, se antecipou ao julgamento da Corte sobre a destinação dos luxuosos relógio, abotoaduras, anel, caneta e uma mosbaha (rosário árabe) masculinos estimados em quase R$ 500 mil sob sua guarda, como fiel depositário, por decisão do ministro do TCU Augusto Nardes — decisão contestada pelo Ministério Público.

Bolsonaro está enrolado com joias sauditas desde quando a Receita Federal apreendeu um conjunto reluzente de diamantes avaliado em R$ 16 milhões na Alfândega de Guarulhos, que um assessor do então ministro de Minas e Energia, almirante Bento Albuquerque, trazia na bagagem sem declarar. Ambos chegavam de uma missão na Arábia Saudita, na qual o ex-ministro havia recebido a “encomenda” destinada à primeira-dama Michele Bolsonaro. Houve quatro tentativas de liberar as joias, todas na base da carteirada, a última, três dias antes de Bolsonaro encerrar o mandato. Numa das tentativas, o ex-ministro de Minas e Energia, acionado para tentar liberar os itens, afirmou que os presentes eram para Michelle. Apesar das tentativas das autoridades em nome da Presidência, os fiscais da Receita não liberaram as joias.

Bento Albuquerque e Marcos André dos Santos Soeiro, ex-assessor do ex-ministro, vão depor sobre o caso, hoje, à Polícia Federal. O episódio das joias destinadas à Michele Bolsonaro foi documentado em vídeos tanto no dia da apreensão quanto na última tentativa de retirada das joias. Os presentes dados a Bolsonaro, que foram entregues pelo ex-ministro, passaram despercebidos pela alfândega. O novo advogado de Bolsonaro, Paulo Amador Cunha Bueno, especialista em crimes tributários, quer que as peças fiquem sob a guarda do TCU até que o destino final — seja acervo privado ou patrimônio da União — fique definido. Bolsonaro argumenta que o presente “especialíssimo” não é patrimônio público.

Desconstrução

Nos Estados Unidos, Bolsonaro vive uma espécie de inferno astral, desde o fracasso da tentativa de golpe em 8 de janeiro. Como é comum acontecer com os políticos quando estão no exterior, perdeu completamente o contato com a realidade política do país e não deu a devida importância ao impacto que os diamantes apreendidos teriam para sua imagem do ponto de vista ético. Desde o escândalo das “rachadinhas”, que estourou no começo de seu governo, é a primeira vez que o ex-presidente aparece diretamente envolvido num escândalo patrimonialista. Agora, se movimenta para tirar o corpo fora e deixar seu ex-ministro naufragar na tormenta. Mas já é muito tarde, o noticiário intenso sobre o valor das joias arrancou das mãos do bolsonarismo a bandeira da ética, que vem sendo empunhada contra o PT.

Michele Bolsonaro também tirou o corpo fora, disse que sequer sabia da existência dos presentes. Considerada como o segundo ativo eleitoral mais importante do PL, o presidente da legenda, Valdemar da Costa Neto, manobra para que a ex-primeira-dama tenha sua imagem desvinculada do escândalo, o que não tem muita chance de dar certo, porque as joias apreendidas só poderiam ser para ela. Ontem, Michele surpreendeu a cúpula do PL ao anunciar que viaja para Orlando nesta semana, com objetivo de encontrar Bolsonaro na Flórida. O regresso de Bolsonaro estava previsto para amanhã, mas foi adiado.

A história dos diamantes continua muito mal contada e parece roteiro de cinema. Entretanto, está sendo de muita serventia para o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que enfrenta uma maré de indicadores negativos: desmatamento, inflação, desarticulação da base. O escândalo das joias desconstrói a imagem de austeridade e honestidade cultivada por Bolsonaro como presidente da República. E que foi um dos fatores da grande votação que teve na eleição.