O PT fracassou porque o poder levou seus quadros à cooptação patrimonialista e à adesão ao programa que havia dado errado no governo Geisel
A crise ética, o impeachment de Dilma Rousseff e a condenação do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva em segunda instância, a 12 anos e 1 mês de prisão em regime fechado, levaram a liderança petista a realizar um movimento de “esquerda, volver!”, na esperança de reagrupar forças para tentar sobreviver. Já não se trata de voltar ao poder, com Lula na Presidência, porque esse projeto se inviabilizou.
É sobrevivência mesmo, inclusive para alguns dos que mais se destacam na narrativa do “golpe” e da “fraude”, como a presidente do PT, senadora Gleisi Hoffman (PT-PR), e o senador Lindbergh Farias (PT-RJ), que deverão deixar o Senado e disputar uma cadeira na Câmara. A estratégia é transformar Lula numa vítima da “ditadura do Judiciário”, organizar uma suposta “resistência democrática” e, com isso, reagrupar forças políticas e sociais, como o PSol e o MST, que haviam se descolado do projeto petista por seu “transformismo” numa “frente de esquerda” pela democracia entre aspas.
O conceito de “transformismo” foi cunhado por Karl Marx no livro O 18 de Brumário, de Luís Bonaparte, que analisa a crise política que levou à restauração da monarquia na França, no período que vai de 1848 a 2 de dezembro de 1851. No calendário da Revolução Francesa, a data corresponde ao 9 de novembro do calendário gregoriano. Foi escrito nos meses de dezembro de 1851 e março de 1852, originalmente para um semanário político de Nova York, que fracassou com a morte prematura de seu editor, Joseph Weydemier. Os artigos foram publicados pela revista Die Revolution. Comparam o golpe de 2 de dezembro àquele que levou Napoleão Bonaparte ao poder, em 1799.
Nessa época, o jovem Marx, como nos mostra o filme em cartaz assim intitulado, sobrevivia dos recursos que ganhava como jornalista e escritor. O livro começa com uma frase que se tornou lugar-comum: “Hegel observa, em uma de suas obras, que todos os fatos e personagens de grande importância na história do mundo ocorrem, por assim dizer, duas vezes. E esqueceu-se de acrescentar: a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa”. Tem tudo a ver com o que está acontecendo com o PT.
Destaca Marx logo no parágrafo seguinte, também famoso: “Os homens fazem a sua própria história, mas não a fazem segundo a sua livre vontade; não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado. A tradição de todas as gerações mortas oprime como um pesadelo o cérebro dos vivos”. De nada adianta, agora, os petistas buscarem “os espíritos do passado, tomando-lhes emprestado os nomes, os gritos de guerra e as roupagens”, sem fazer uma autocrítica dos erros tremendos que cometeram quando estavam no poder.
Aggiornamento
É que a passagem de Lula pelo poder e a de Dilma não representaram um “aggiornamento” político. O termo italiano significa atualização e foi consagrado pelo papa João XXII no Concílio Vaticano II. O “transformismo” é outra coisa: significa uma mudança ditada pelo pragmatismo e pelo oportunismo, no qual um determinado partido e sua representação parlamentar se descolam da base social que lhes deu origem e passam a cuidar dos seus próprios interesses. Foi isso o que aconteceu com os partidos na crise francesa que levou à ditadura do sobrinho de Napoleão, dando origem a um outro conceito muito conhecido: “bonapartismo”. De certa forma, até corremos o risco de um governo bonapartista após as eleições de 2018.
Não é preciso chover no molhado e tecer detalhes do fracasso petista, mas é importante assinalar que a tentativa de renascer das cinzas com o velho discurso radical, nacional-libertador, é uma farsa política que dará com os burros n’água. A deriva petista para o centro fracassou porque a chegada ao poder levou seus quadros à cooptação patrimonialista e à adesão a um programa que já havia dado errado no governo Geisel, durante o regime militar. Não foi um
aggiornamento verdadeiro, no qual o maior partido de esquerda do país, surgido da transição à democracia, houvesse se atualizado programaticamente. Isso tem um preço, simples assim.
E o que aconteceu com a esquerda moderada, socialdemocrata, que confrontou o PT e apostou no impeachment de Dilma? Está diante do mesmo problema, precisa se atualizar programaticamente, com autocrítica e revisão teórica, e não apenas aderir a teses ultraliberais por pragmatismo político. Esse é outro tipo de “transformismo” que contribui para a fragmentação das forças de centro do espectro político porque não há uma real convergência com os liberais em termos de construção de um novo projeto democrático para o país. A ultrapassagem da crise de financiamento do Estado brasileiro e a construção de um novo consenso nacional pressupõe um programa exequível de governo, em sintonia com a sociedade, e não com as forças que ainda se locupletam do velho patrimonialismo.