Bolsonaro sofre muitas influências da vertente autoritária do positivismo, entre as quais da tese de que o presidente deve ter a autoridade de um ditador
Le Marais, em Paris, bairro que abrigou a antiga nobreza francesa, é um reduto das comunidades gay e judaica. Uma de suas atrações é a Chapelle de l’Humanité, construída em 1903, por iniciativa do Apostolado Positivista do Brasil. Fica na rue Payenne, nº 5, local onde morou Clotilde de Vaux, a escritora que inspirou Auguste de Comte, um dos pais da sociologia e criador do positivismo. Decorado pelos brasileiros DécioVillares e Eduardo de Sá e tombado pelo Patrimônio francês, é o único templo positivista remanescente na Europa.
A capela é quase uma réplica do Templo da Humanidade da Igreja Positivista do Brasil, na rua Benjamin Constant, nº 74, na Glória, no Rio de Janeiro, cujo teto cheio de infiltrações desabou durante um temporal, em 2009. O positivismo chegou ao Brasil por intermédio de Miguel Lemos e Raimundo Teixeira Mendes. Em 1877, expulsos da Escola Politécnica de São Paulo, viajaram para Paris, onde frequentaram círculos positivistas.
A Igreja Positivista brasileira foi fundada no dia 11 de maio de 1881 e seu lema inspirou as inscrições da bandeira nacional: “O Amor por princípio e a Ordem por base; o Progresso por fim”. Seus membros eram figuras ativas na vida política nacional, o que fez com que o positivismo fosse a ideologia dominante do movimento republicano. Benjamin Constant, engenheiro militar e professor da Escola Militar da Praia Vermelha, influenciou fortemente os militares que proclamaram a República, da qual foi ministro da Guerra.
Entretanto, a Constituição de 1881 adotou as teses dos federalistas americanos John Jay, Alexander Hamilton e James Madison: federação, presidencialismo, separação dos Poderes, eleição direta, o bicameralismo, direitos e garantias individuais, como o habeas corpus. No dia seguinte ao da sua promulgação, porém, em vez do republicano paulista Prudente de Moraes (PRP), foi eleito presidente o marechal alagoano Deodoro da Fonseca. Júlio de Castilhos, líder positivista gaúcho, apoiou a eleição de Deodoro, mas quatro deputados de seu partido, o PRR, votaram em Prudente de Morais: Assis Brasil, Manuel da Rocha Osório, Alcides Lima e Vitorino Monteiro.
Teologia e Metafísica
No Rio Grande do Sul, uma comissão formada por Assis Brasil, Júlio de Castilhos e Ramiro Barcellos elaborava o projeto da Constituição estadual. Castilhos impôs sua liderança. Aprovou um texto no qual a autoridade legal do presidente do estado equivalia à de um ditador, sendo eleito para o cargo em 14 de julho de 1891. O vice-presidente Floriano Peixoto, também alagoano, em 21 de novembro daquele ano, assumiria a Presidência e passaria a governar em permanente “estado de sítio”, como se fosse um ditador. Nasciam o castilhismo e o florianismo, que se fundiriam ao tenentismo na Revolução de 1930 e, mais tarde, dariam origem ao Estado Novo, sob a liderança de Getulio Vargas. Em nenhum outro lugar do mundo, nem mesmo na França, as ideias positivistas foram tão longevas como no Brasil.
Até hoje, o positivismo é a marca registrada da política brasileira e nossas instituições. Repousa sobre três pilares: a defesa da família, o estado e a ciência. Entretanto, como quase todas as ideais que circulam por aqui, sempre foi heterodoxo. Por exemplo, influenciou Maurício de Lacerda e Oliveira Viana. Ambos apoiaram a Revolução de 1930, mas tomaram caminhos opostos. O primeiro tornou-se líder da Aliança Nacional Libertadora (ANL) e, depois, fundaria a União Democrática Nacional (UDN). O segundo seria um adversário feroz do liberalismo e grande ideólogo do Estado Novo, em 1937, e fez a cabeça dos generais que deram o golpe militar de 1964.
Bolsonaro sofre muitas influências dessa vertente autoritária do positivismo, entre as quais da tese de que o presidente deve ter a autoridade de um ditador. Essa é a origem dos conflitos institucionais que vivemos. Mas há uma diferença: Bolsonaro não acredita nas ciências, gravita entre os estados “teológico” e “metafísico”. O positivismo é a fé que aposta nas grandes ciências, principalmente a Biologia e a Sociologia, as quais o presidente ignora. E tem mais: as crises que provoca desorganizam a institucionalidade construída pela elite política conservadora do país, não pela esquerda quando esteve no poder.
Obs: O mapa que ilustra a coluna é de Letícia Soares, Sociologia-UEMG