“A crise de Bolsonaro com o PSL não tem nada a ver com os temas em discussão no Congresso, nem com a polarização política direita versus esquerda. É o varejo do varejo que a move”
“Cria cuervos que te sacarán los ojos” (crie corvos e eles te arrancarão os olhos) é um velho provérbio espanhol. A citação inspirou a obra-prima do cineasta Carlos Saura, que se passa em pleno franquismo. Aqui, porém, tem mais a ver com a crise entre o presidente Jair Bolsonaro e seu partido, o PSL, que ameaça implodir a legenda, quiçá o próprio governo, se o líder da bancada na Câmara, deputado Delegado Waldir (GO), nesse caso, fosse levado a sério. A sua ameaça vazou em gravação divulgada à imprensa, como vazara antes uma declaração do presidente da República articulando a substituição do líder por seu filho, deputado Eduardo Bolsonaro (SP) — aquele mesmo que o pai pretendia nomear embaixador do Brasil nos Estados Unidos — numa reunião no Palácio do Planalto com 20 deputados da legenda.
A crise começou com uma declaração de Bolsonaro de que o presidente do PSL, deputado Luciano Bivar (PE), estaria queimado, evoluiu para um questionamento sobre a transparência da gestão e uma ação de busca e apreensão da Polícia Federal na casa e no escritório do cacique da legenda. Fechou a semana com uma mudança na liderança do governo no Congresso, a destituição da deputada Joice Hasselmann (SP), que foi substituída pelo senador Eduardo Gomes (MDB-TO), e a fracassada tentativa de destituição do líder da bancada na Câmara, por meio de duas listas cujas assinaturas não atingiram o número de deputados necessários para o reconhecimento da Mesa.
Nesse bafafá, além dos vazamentos de conversas gravadas sem autorização, houve muito disse-me-disse e articulações de bastidor para destituir os filhos do presidente Bolsonaro do comando da legenda no Rio de Janeiro, no caso, o senador Flávio Bolsonaro, e em São Paulo, o deputado Eduardo Bolsonaro. No fim da tarde, Delegado Waldir tentava minimizar as próprias ameaças: “É uma fala num momento de emoção, né? É uma fala quando você percebe a ingratidão. Tenho que buscar as palavras”, disse. Ao encontrá-las, a emenda foi pior do que o soneto: “Nós somos Bolsonaro. Nós somos que nem mulher traída. Apanha, não é? Mas, mesmo assim, ela volta ao aconchego”.
A crise de Bolsonaro com seu partido parece reprise de outros momentos da história, em que presidentes eleitos numa onda antissistêmica, por pequenos partidos, sem uma base sólida no Congresso, acabaram interrompendo o mandato: Jânio Quadros, eleito pelo PTN, que renunciou em 1961, sonhando com a volta nos braços do povo, e Fernando Collor de Mello, eleito pelo PRN, que também renunciou, mas para evitar um impeachment. Ambos tiveram comportamentos histriônicos na Presidência, foram eleitos com uma narrativa de combate à corrupção, numa onda populista de direita. Os contextos, porém, eram diferentes. A eleição de Jânio foi pautada pela Guerra Fria; a de Collor, pela modernização do país após a redemocratização.
Varejo
O mais impressionante na crise de Bolsonaro com o PSL é que a disputa não tem nada a ver com os grandes temas em discussão no Congresso, nem mesmo com a polarização política direita versus esquerda protagonizada pelo presidente da República. É o varejo do varejo da política partidária que a move. Bolsonaro considera todos os parlamentares do PSL caudatários de seu próprio prestígio, porque foram eleitos pela base bolsonarista, que descarregou votos nos candidatos proporcionais que o apoiavam. Nesse aspecto, está cheio de razão. Ocorre que os parlamentares pensam diferente, descobriram seu próprio poder na convivência com outros líderes e bancadas partidárias, querem mais espaço no governo e não abrem mão de seu quinhão na partilha dos recursos dos fundos partidário e eleitoral.
Bolsonaro não desistiu de remover Delegado Valdir. O líder do governo na Câmara, deputado Major Vitor Hugo (GO), continua as articulações para fazer de Eduardo Bolsonaro (SP) o novo líder da bancada. A briga tem muito a ver com o posicionamento da legenda em relação às eleições municipais do próximo ano. Bolsonaro quer indicar os candidatos apoiados pelo PSL, principalmente nas capitais. A experiência mostra que esse tipo de envolvimento direto do presidente da República nas eleições não costuma dar muito certo. Nacionalizar as eleições municipais não é a tendência dos eleitores, mesmo nas grandes metrópoles. Foram raros os momentos em que isso aconteceu, como na eleição de Luiza Erundina, então no PT, à Prefeitura de São Paulo, em 1988, durante o governo José Sarney.
O maior problema é que a disputa ocorre num momento em que o governo está sem agenda no Congresso. A aprovação da reforma da Previdência deverá ser concluída na próxima quarta-feira, no Senado. Com o engavetamento da reforma tributária, o governo não sabe ainda o que fazer em termos de iniciativa legislativa. O ministro da Economia, Paulo Guedes, ontem, negociava uma pauta com o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), e o presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), mas foi atropelado pela crise entre seu chefe e seus correligionários. Não fossem o DEM e o MDB, principalmente, o governo estaria no sal, sem a menor governabilidade.