“O preceito de que para se construir algo é preciso destruir o sistema preexistente é perigoso. Combina tanto com o ultraliberalismo de direita quanto com o radicalismo de ultraesquerda”
O tema da violência absurda e brutal no cinema de Hollywood faz parte da política de exportação do americanismo, dos antigos filmes de caubóis aos modernos blockbusters de inspiração noir à la Quentin Tarantino. Os ingredientes do modo de vida americano — do sonho de ascensão social à justiça pelas próprias mãos —, estão todos lá e vão acompanhando as mudanças dos tempos, mas sempre preservando o espírito do “self-made man”. O filme Coringa é uma encarnação desse espírito com sinal trocado. Arthur Fleck (Joaquin Phoenix) é um palhaço com problemas psicológicos que toda semana precisa comparecer a uma agente social, devido aos seus problemas mentais. Após ser demitido, Fleck reage mal ao assédio moral de três jovens embriagados e os mata em pleno metrô. Os assassinatos catalisam um movimento popular contra a elite de Gotham City.
Nos Estados Unidos, houve uma grande polêmica sobre o filme, por causa de seu paralelo com o atentado de Aurora, em 2012, quando um sujeito se dizendo o Coringa, usando uma máscara de gás, entrou numa sessão de cinema e disparou a esmo rajadas de uma AR-15, matando 12 pessoas e ferindo outras 70. Famílias das vítimas resolveram protestar, o que obrigou a Warner Bros a divulgar uma nota na qual se defende, dizendo que um de seus papéis é provocar conversas difíceis sobre questões complexas: “Violência com armas de fogo é uma questão crítica na nossa sociedade. Nem o personagem ficcional Coringa, nem o filme são um apoio à violência no mundo real”.
Diante das críticas, o diretor Todd Phillips apelou ao público para que tirasse suas próprias conclusões. “O filme trata da falta de amor, trauma da infância e falta de compaixão no mundo. Acredito que as pessoas conseguem aguentar essa mensagem.” No embalo, disparou contra os críticos: “Para mim, a arte pode ser complicada e, às vezes, a arte é feita para ser complicada. Se você quer arte descomplicada, talvez você deva ter aulas de caligrafia, mas fazer cinema é sempre uma arte complicada”. Pura verdade.
No Brasil, outro filme polêmico — mas sem a mesma força de bilheteria, apesar da carreira internacional bem-sucedida — é Bacurau. Os diretores Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles constroem uma estranha fábula social sobre uma cidade que desaparece e é tomada por inimigos arrogantes, que se comportam como uma espécie de novos grileiros capitalistas. Bacurau é uma comunidade romântica, solidária, horizontal e progressista, que some do mapa quando necessário e transforma sua invisibilidade num trunfo contra os inimigos. Explode em violência. Ao contrário de Coringa, a reação é coletiva.
Self-made man
Trata-se de uma evidente metáfora sobre a realidade brasileira, na qual a violência explode na fronteira entre capitalismo formal e informal, com ou sem mediação do Estado. Para o crítico Eduardo Viveiro de Castro, retrata a vida dos “involuntários da pátria”, que nunca foram incluídos por completo nem nos serviços públicos nem no mercado e, a qualquer momento, podem se tornar objetos do poder político ou do interesse econômico: indígenas acossados pela fronteira extrativa, camponeses cercados por posseiros e jagunços, favelados ameaçados pela especulação imobiliária, pela polícia, pela milícia.
É inevitável o paralelo de Bacurau com o anti-imperialismo da esquerda tradicional, embora seu valor estético esteja acima disso. No El País, Rodrigo Nunes invoca a necropolítica para contextualizara o filme num mundo de concentração de renda astronômica, degradação ambiental crescente, recursos cada vez mais escassos e aumento das populações excedentes: desempregados estruturais, refugiados climáticos, população carcerária.
Vivemos um momento em que combinação de ultraliberalismo e culto da violência viraram narrativas de governo. Entretanto, o preceito de que para se construir algo é preciso destruir o sistema preexistente é perigoso. Essa ideia combina tanto com o ultraliberalismo de direita quanto com o radicalismo revolucionário de ultraesquerda. A incitação à violência individual ou coletiva, quando deixa de ser uma alegoria para inspirar a ação, sempre acaba em tragédia.
Voltemos ao “self-made man”. É uma frase cunhada em 2 de fevereiro de 1832 por Henry Clay no Senado dos Estados Unidos, para descrever indivíduos cujo sucesso residia nos próprios indivíduos, não em condições externas. Benjamin Franklin resumiu o conceito: “Quem tem caráter trabalha, trabalha e trabalha, vence”. O problema é que essa receita já não funciona a contento nem nos Estados Unidos. O impacto da revolução tecnológica na economia mundial mudou a natureza do trabalho e da produção, aprofundou as desigualdades e a concentração da renda. É emblemático o caso do Chile, o país mais globalizado da América do Sul, cujos indicadores são muito melhores do que os do Brasil. Ninguém tem solução pronta para enfrentar a situação. Coringa e Bacurau são alegorias que não devem se reproduzir na vida real, mas nos levam a repensar a economia e a política.
Lula não consegue sustentar medidas econômicas impopulares, porém necessárias, ainda que em médio e longo…
Essa foi a primeira troca da reforma ministerial que está sendo maturada no Palácio do…
Lula não precisou adotar uma dura política recessiva no primeiro ano de governo, porém se…
Agora, às vésperas de tomar posse, Trump choca o mundo com uma visão geopolítica expansionista…