Nas entrelinhas: A conta do desajuste

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A política de conciliação continua vivíssima. Tornou-se, mais uma vez, a tábua de salvação do velho patrimonialismo. Estão aí o clientelismo com gastos públicos e as articulações contra a Lava-Jato

Não existe política de conciliação no Brasil sem uma grande dose de patrimonialismo, que é a marca registrada das práticas políticas que não distinguem os limites do público e do privado. O patrimonialismo surgiu com a decadência do Império Romano, por influência dos bárbaros germânicos, quando os governantes começaram a se apropriar privadamente dos antigos bens da República. Tornou-se uma característica do absolutismo e, assim, chegou ao Brasil, com a concessão de títulos, sesmarias e poderes quase absolutos aos senhores de terra pela Coroa portuguesa.

No clássico Coronelismo: enxada e voto, Vitor Nunes Leal descreve como o patrimonialismo sobreviveu ao Império e chegou à República Velha. Em troca dos votos dos coronéis fazendeiros, o Estado brasileiro homologou seus poderes formais e informais. Em contrapartida, os senhores de terra foram se adaptando aos novos tempos políticos, entregando os anéis para não perderem os dedos. Isso não seria possível sem a velha política de conciliação do Império, inaugurada no gabinete do Marquês de Paraná.

Entre a abdicação de Dom Pedro I e o Golpe da Maioridade de Dom Pedro II, os partidos liberal e conservador protagonizavam disputas políticas da época. Os liberais (luzias) reivindicavam a ampliação da autonomia dos governos provinciais e a reforma de alguns aspectos contidos na Constituição de 1824; os conservadores (saquaremas) eram favoráveis à manutenção da estrutura política centralizada e à preservação dos poderes reservados ao imperador.

A eclosão das rebeliões e de outros movimentos de contestação que questionavam as determinações da Regência resultou, em 1840, no Golpe da Maioridade. Dom Pedro II assumiu o governo, foi apoiado e prestigiou a presença de figuras liberais em seu ministério. Escândalos de violência e corrupção envolvendo os liberais nas eleições, porém, provocaram a dissolução do ministério, em 1853, e a convocação de Honório Carneiro Leão, o Marquês de Paraná, um político conservador que estava havia 10 anos rompido com Dom Pedro II, para compor um novo gabinete. No regime parlamentarista da época, o imperador escolhia o presidente do Conselho de Ministros, e este formava o gabinete, escolhendo os demais ministros. Carneiro Leão montou um gabinete de liberais e conservadores mais leais a Dom Pedro II do que aos seus partidos.

O Gabinete Paraná representou a consolidação de uma inédita estabilidade, que proporcionou conquistas inimagináveis em tempos de ferrenha disputa política. Como havia unidade de interesses das elites liberais e conservadoras, principalmente em defesa da escravidão, o Segundo Reinado conseguiu manter a sua estrutura centralizada sem maiores sobressaltos. Carneiro Leão, que fora nomeado presidente da província de Pernambuco após a repressão à Revolução Praieira, descobriu em primeira mão que os princípios partidários eram vistos como irrelevantes e ignorados em níveis provinciais e locais. Um gabinete poderia ganhar o apoio de chefes locais para candidatos nacionais usando apenas o clientelismo.

Quem narra muito bem esse período é Joaquim Nabuco, no livro Um Estadista no Império, que o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso não cansou de recomendar aos tucanos inconformados com sua aliança com o PFL, como o falecido governador paulista Mário Covas. O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva seguiu seus passos com sinal trocado, o que resultou no transformismo petista. Dilma Rousseff, também desse ponto de vista, fez tudo errado e perdeu o apoio das velhas oligarquias e dos novos chefes políticos.

Clientelismo
Na chamada Nova República, o grande partido da conciliação vem sendo o PMDB, que soube conviver em conflito com o PT nos estados e a ele se aliar no poder central, como os saquaremas fizeram com os luzias no Império. A política de conciliação sobreviveu a duas ditaduras e continua vivíssima. Tornou-se, mais uma vez, a tábua de salvação do velho patrimonialismo. Estão aí o clientelismo com gastos públicos e as articulações para salvar da Operação Lava-Jato os que foram pegos se apropriando de bens públicos.

O problema é o custo dessas alianças para os cofres públicos, como acontece agora. Ontem, o governo anunciou mais um aumento de impostos, para obter uma receita adicional de R$ 10,4 bilhões. O objetivo das medidas é cumprir a meta fiscal de 2017, um deficit (despesas maiores que receitas) de R$ 139 bilhões. A conta não inclui as despesas com pagamento de juros da dívida pública. Para compensar a tunga no bolso do contribuinte, fará um bloqueio adicional de R$ 5,9 bilhões em gastos no orçamento federal.

A tributação sobre a gasolina subirá R$ 0,41 por litro, ou seja, mais que dobrou, já que passará a 0,89 cada litro de gasolina, considerando a incidência da Cide, que é de R$ 0,10 por litro. O diesel subirá em R$ 0,21 e ficará em R$ 0,46 por litro. Segundo a Receita Federal, o crescimento de 0,77% na receita foi insuficiente para fechar as contas públicas. Na verdade, a receita com impostos e contribuições caiu 0,20% no período. O resultado positivo foi salvo pelos royalties pagos por empresas que exploram petróleo. O governo Temer não cortou na própria carne; pendurou a conta do ajuste fiscal na lei do teto de gastos. Ou seja, empurrou com a barriga.

Luiz Carlos Azedo

Jornalista

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