O herói pode ser um indivíduo comum que se insere e se destaca no mundo por meio do discurso, se move quando os outros estão paralisados. Precisa fazer aquilo que outro poderia ter feito, mas não fez
Os poemas épicos surgiram na Antiguidade, porém, entraram em decadência no século XVII, quando surgiram as narrativas em prosa, o romance. Dom Quixote, por exemplo, de Miguel de Cervantes, foi uma obra revolucionária porque representou a invenção do romance e, ao mesmo tempo, desnudou a realidade. Quando Miguel de Cervantes mandou Dom Quixote viajar, rasgou a cortina mágica, tecida de lendas, que estava suspensa diante do mundo.
A vida se abriu com a nudez cômica de sua prosa, destaca o escritor tcheco Milan Kundera (A Cortina, Companhia das Letras): “Assim como uma mulher que se maquia antes de sair apressada para o primeiro encontro, o mundo, quando corre em nossa direção, no momento que nascemos, já está maquiado, mascarado, pré-interpretado. E os conformistas não serão os únicos a ser enganados; os seres rebeldes, ávidos de se opor a tudo e a todos, não se dão conta do quanto também estão sendo obedientes, não se revoltarão a não ser contra o que interpretado (pré-interpretado) como digno de revolta.”
Ilíada e Odisseia, de Homero; Eneida, de Virgílio (70 a. C.-19 a. C.); e Os Lusíadas, de Luís Vaz de Camões (1524-1580), são exemplos de poemas épicos. Toda epopeia clássica começa com a revelação do herói e sua temática, invocando uma divindade inspiradora do autor, que narra os feitos heroicos do protagonista. Ou seja, a inspiração é o passado, mas este serve de reverência atemporal para a História, representa o processo civilizatório. Não à toa Virgílio buscou inspiração em Homero. Roma resgatava a cultura e os padrões estéticos da Grécia Antiga, numa narrativa plena de aventuras e heroísmo.
No poema épico, o herói reproduz as qualidades do seu povo, não apenas suas características individuais. Tem uma missão quase impossível a cumprir, o que destaca suas qualidades ao longo de uma narrativa, na qual suas dificuldades são extraordinárias. No modernismo, o poema Mensagem, de 1934, o poeta português Fernando Pessoa, com métrica e rima, resgata o heroísmo e a grandeza de Portugal no período dos Descobrimentos, numa crítica à decadência da elite de sua época.
Publicado oficialmente no México em 1950, e clandestinamente no Chile, no mesmo ano, “Canto Geral”, de Pablo Neruda, é outro poema épico. Escrito quando o poeta fugia do Chile para Argentina, pela cordilheira dos Andes, os versos denunciam as injustiças históricas que os países da América Latina sofreram ao longo dos séculos. Vilões e heróis são reclassificados a partir da sua perspectiva.
Escrito em Buenos Aires, em 1976, o Poema Sujo, de Ferreira Gullar, é outro exemplo de poema épico. Seus dois mil versos são uma espécie de ode à liberdade. O poeta já havia estado exilado em Moscou, em Santiago e em Lima. No Brasil, o regime militar implantado após o golpe de 1964 tinha autorização para enviar agentes dos serviços de segurança à Buenos Aires e capturar políticos oposicionistas. Temendo pela própria vida, Gullar trancou-se no apartamento onde morava, na Avenida Honório Pueryredon, em Buenos Aires, e escreveu o poema como se fosse um testamento, uma síntese do que pensava sobre a cultura e a vida.
Mitos e heróis
Teremos uma semana épica aqui no Brasil, na qual está se decidindo o nosso futuro, num embate entre o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e o presidente Jair Bolsonaro, que pode se decidir no primeiro turno em favor do primeiro ou nos levar a um segundo turno imprevisível, não do ponto de vista eleitoral, mas institucional. Será uma semana tensa, de muitas agressões e estresse emocional.
O mito de que o brasileiro é um “homem cordial” vem de um senso comum, desconstruído por Sérgio Buarque de Holanda, em Raízes do Brasil. A expressão cordial é um “tipo ideal” que não indica apenas bons modos e gentileza, vem da palavra latina “cordis”, que significa coração. Segundo Buarque, o brasileiro precisa viver nos outros. A cordialidade muitas vezes é mera aparência, “detém-se na parte exterior, epidérmica, do indivíduo, podendo mesmo servir, quando necessário, de peça de resistência.” A nossa história mostra o quanto a luta política pode ser cruel.
Lula e Bolsonaro são figuras mitológicas da política brasileira, Lula é o líder metalúrgico que chegou lá, passou o pão que o diabo amassou após deixar o poder e renasceu das cinzas, como fênix. Bolsonaro é o “mito” que desafiou o sistema, construiu uma carreira política na contramão, lançou-se à disputa pela Presidência com a cara e a coragem, sobreviveu ao atentado que o deixou entre a vida e a morte na reta final da campanha de 2018. Um tenta voltar ao poder, com o passivo dos escândalos de seu governo e um legado de realizações sociais; o outro, tenta a reeleição, com uma agenda conservadora e o fardo de um governo desastrado, da falta de empatia e das suas grosserias misóginas. Encarnam o papel de herói e anti-herói, simultaneamente, para uma sociedade dividida entre “nós” e “eles”.
Ulysses, o semideus grego da Ilíada de Homero tinha uma existência verdadeira, voltava para casa, tinha uma vida normal, até que a situação exigisse um gesto glorioso e individual. A filósofa judia alemã Hanna Arendt dizia que a disposição de pensar, agir e falar politicamente pode mudar o curso na história. O herói pode ser um indivíduo comum que se insere e se destaca no mundo por meio do discurso, se move quando os outros estão paralisados. Precisa fazer aquilo que outro poderia ter feito, mas não fez; ou melhor, o que deixaram de fazer. Lula e Bolsonaro estão ancorados no passado, têm projetos antagônicos, populistas, um é democrata, o outro é autoritário, mas vão decidir o futuro de todos nós.