Nas entrelinhas: Como um vídeo game

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O clima de “guerra fria” é ainda mais perigoso porque as guerras, cada vez mais, precisam de menos soldados e mais tecnologia, apesar das crises humanitárias que provocam

O ataque combinado dos Estados Unidos, Inglaterra e França, principais potências do Tratado do Atlântico Norte, a supostos depósitos e uma fábrica de armas químicas da Síria, nos subúrbios de Damasco e na cidade de Horms, sexta-feira à noite, foi anunciado pelo presidente Donald Trump na semana passada pelo Twitter, como quem desafiava o presidente russo Vladimir Putin para uma partida de vídeo game. O motivo foi um suposto ataque do governo Sírio com armas químicas na cidade de Duma, em 7 de abril. O regime sírio nega o uso dessas armas, que são proibidas por convenções da ONU.

Os mísseis foram lançados por volta das 22h, durante o pronunciamento de Trump na Casa Branca. A ação foi apoiada pela premiê britânica, Theresa May, e pelo presidente, francês Emmanuel Macron, que ligou para o presidente russo, Vladimir Putin, para explicar que o ataque foi “restrito a capacidades do regime sírio de armas químicas”. Os sistemas de defesa da Síria atingiram 13 mísseis em Al Kiswah, nos subúrbios de Damasco, mas não conseguiram evitar a destruição de suas instalações militares. A Rússia afirmou que a defesa antiaérea síria interceptou 71 mísseis, mas o Departamento de Defesa dos EUA garante que nenhum dos 105 mísseis disparados sofreu interferência.

Como em toda guerra, há choque de versões. As primeiras avaliações são no sentido de que a ação foi calculada para evitar uma reação militar da Rússia, aliada do governo do presidente sírio Bashar al-Assad. O presidente russo solicitou uma reunião de emergência do Conselho de Segurança da ONU e aparentemente assimilou o golpe. Mas suas boas relações com Trump foram para o espaço: “A Rússia precisa decidir se continuará nesse caminho sombrio ou se unirá aos países civilizados como uma força de estabilidade e paz. Com esperança um dia nos daremos bem com a Rússia e talvez até com o Irã, mas talvez não”, disse o presidente norte-americano, que é investigado por suposto envolvimento com a Rússia na campanha eleitoral em que derrotou a democrata Hilary Clinton.

Putin acusa as três potências ocidentais de armarem uma grande farsa e sustenta que o suposto ataque químico é uma encenação patrocinada pelos serviços secretos britânicos. O contencioso vem numa escalada, desde a tentativa de envenenamento de um ex-espião russo na Inglaterra. A diplomacia russa compara a acusação àquela que motivou a invasão do Iraque, no regime de Saddam Hussein. Nunca se comprovou a existência de armas químicas, denúncia dos serviços secretos britânicos. Entretanto, o mais provável é que a reação russa seja semelhante às de outras crises: aproveitará a situação para reforçar sua presença militar, como aconteceu na Crimeia e na região ucraniana de Donets, que foram anexadas à federação Russa.

O grande jogo
O ataque tem muito significado para a opinião pública norte-americana e europeia em relação às suspeitas de envolvimento de Trump com os russos na campanha eleitoral, mas militarmente não tem o poder de alterar a correlação de forças internas na Síria. Com apoio da Rússia, do Irã e do Hezbollah, grupo xiita libanês historicamente ligado ao regime sírio, Assad controla quase todas as cidades do país. O ataque foi apoiado pela Alemanha, Japão, Turquia e Israel, mas condenado pela China. O mundo árabe, desde o fim do Império Otomano, é palco de um grande jogo entre as potências. A Rússia e a Inglaterra disputam influência na chamada Eurásia e no Oriente Médio há 200 anos. Afeganistão e a antiga Pérsia, atual Irã, foram os centros dessa disputa.

A Síria é a ligação da Eurásia com o Oriente Médio para a Rússia, por causa da sua frota naval no Mediterrâneo. No fim do ano passado, a Síria assinou um acordo militar com a Rússia para ampliar a base de Tartus, que poderá abrigar até 11 navios militares russos, incluindo um de propulsão nuclear. O acordo vigorará por 49 anos com a possibilidade de seu prolongamento automático por períodos de 25 anos. Tão logo foi anunciado o ataque por Trump, os navios da Marinha russa deixaram o porto e foram para o mar, restando apenas um submarino da classe Kilo, apelidados de “buraco negro no oceano” pela Marinha dos EUA, porque eles são quase indetectáveis quando submersos. Tartus era apenas um posto de abastecimento e manutenção da frota do Mediterrâneo; será transformado numa base naval de verdade pelos russos. Os ataques ao regime de Assad reforçam sua dependência militar, econômica e diplomática em relação à Rússia e à China.

É preciso contextualizar o ambiente em que ocorre o conflito. Há uma disputa pelo controle do comércio no Pacífico, novo eixo da economia mundial, na qual Trump protagoniza uma guerra comercial com a China. O ataque de sexta-feira sinaliza para o mundo que as potências do Ocidente não vão abrir mão do controle militar e comercial do Mediterrâneo, espaço no qual a Inglaterra sempre teve forte influência. O clima de “guerra fria” é ainda mais perigoso porque as guerras, cada vez mais, precisam de menos soldados e mais tecnologia, apesar das crises humanitárias que provocam nos territórios onde ocorrem. Além disso, alimentam tendências autoritárias, que estão se fortalecendo no mundo inteiro, mesmo nos países democráticos. Nesse aspecto, pode ser que os russos é que estejam ganhando.

Luiz Carlos Azedo

Jornalista

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