É inegável o papel positivo na candidatura de Ciro Gomes, mesmo que não chegue ao segundo turno, porque está fomentando o debate com um olhar para o futuro
Foi uma mudança da água para o vinho a entrevista do candidato do PDT à Presidência da República, Ciro Gomes, aos jornalistas Willian Bonner e Renata Vasconcellos, no Jornal Nacional (TV Globo), na terça-feira à noite, em comparação com a do presidente Jair Bolsonaro, na véspera. Ciro estava de bom humor, focado nas suas propostas e pautou a entrevista, que transcorreu de forma bem mais produtiva do que a de segunda-feira.
O ex-governador do Ceará afirmou que irá cortar os privilégios criados para acúmulo de renda e criticou a corrupção. Questionado sobre a dificuldade que teve em formar alianças nacionais em torno da sua candidatura, disse que irá mudar o modelo de governança política instaurado na redemocratização e que trouxe caos para os presidentes em todos os anos de 1989 até aqui. “A corrupção é feita por pessoas, e o desastre econômico e privilégios criados é o que faz com que o Brasil tenha cinco pessoas acumulando a renda das 100 milhões mais pobres e da classe média”, afirmou.
“Trinta e três milhões de pessoas estão com fome e 120 milhões não fizeram as três refeições hoje. E determinados grupos políticos são responsáveis por essa tragédia (…) A ciência da insanidade é você repetir as mesmas coisas e buscar resultado diferente”, afirmou. Além de combater a corrupção, Ciro adiantou que pretende mudar o modelo de governança do país, acabando com o presidencialismo de coalizão: “O Collor governou com esse modelo e foi cassado. O Fernando Henrique e o PSDB nunca mais ganharam uma eleição nacional com esse modelo. O Lula foi parar na prisão. Esse modelo é o que se convencionou chamar de presidencialismo de coalizão, na expressão elegante de FHC, ou na adesão vexaminosa e corrupta ao Centrão”, disparou. Não será uma tarefa fácil sem bancada numerosa no Congresso.
Questionado sobre isso, Ciro disse que pretende dialogar com o Congresso Nacional e, em casos de impasse, convocará a população para decidir em plebiscitos, que são usados na América Latina com propósitos populistas, principalmente para esvaziar o Congresso. Amparou-se nos modelos da Europa e dos Estados Unidos. No Brasil, depois da redemocratização, houve dois plebiscitos: um sobre o parlamentarismo, a maioria decidiu manter o presidencialismo; outro sobre a venda de armas, o povo optou pelo direito de comprar.
Ciro criticou a Nicarágua e a Venezuela, mirando o ex-presidente Lula e o PT, e atacou a política ambiental do governo Bolsonaro. Segundo Ciro, a principal forma de retomar o controle das políticas ambientais é fazer com que as legislações existentes sejam respeitadas é punir os infratores. Em seu eventual governo, frisou, “a algema vai voltar a funcionar”.
A proposta mais arrojada de Ciro é a criação de um imposto para grandes fortunas, ao qual atribui a possibilidade de arrecadar o suficiente para financiar um programa de renda básica universal de R$ 1 mil. A ideia é taxar fortunas acima de R$ 20 milhões. “Cada super rico vai pagar a vida digna de 821 mil brasileiros mais pobres”, disse.
Outro tema no qual pretende focar é a segurança pública. “Quantas vezes eu ouvi, nos governos dos quais eu tive perto, que segurança é problema dos estados. Se o governo federal não assumir para si a tarefa inteirinha de investigar, prender, fazer a comunicação ao Ministério Público, julgar e aprisionar, isolando a comunicação das cabeças das organizações criminosas, nenhum estado será capaz de resolver isso.” Sua proposta é federalizar os crimes associados a facções criminosas, milícias, narcotráfico, contrabando de armas, lavagem de dinheiro e crimes de colarinho branco.
Projeto iluminista
Ciro conseguiu pautar a entrevista para consolidar a imagem de candidato preparado para governar o país, que apresenta propostas claras de novo projeto nacional, mas está isolado politicamente e entra na disputa com pouco tempo de televisão para expor suas ideias. Terceiro colocado nas pesquisas de intenções de voto, porém, faz uma campanha importante para arejar o debate político. Entretanto, foi ensanduichado entre o ex-presidente Lula e a senadora Simone Tebet (MDB), que pretende tomar seu lugar quando começar o horário eleitoral. Ciro é um candidato iluminista, na linha de pensadores brasileiros como Caio Prado Junior, Celso Furtado e, principalmente, Mangabeira Unger, que foi seu professor em Harvard.
Segundo o sociólogo Pedro Cláudio (Cunca) Bocayuva Cunha, professor do Programa de Pós-graduação de Políticas Públicas em Direitos Humanos do NEPP-DH da UFRJ, “seu esforço em encontrar boas soluções técnicas num programa neodesenvolvimentista, de tipo schumpeteriano, que pensa o Brasil (na chave abstrata da Coreia do Sul de 1970), não tem sujeitos sociais e povo na racionalidade”. Chamar a população sem se colocar com ela é uma repetição da “fórmula do caçador de Marajás”, critica. De acordo com ele, o debate programático exige a sustentação de uma nova maioria”.
Esse olhar crítico de Cunca Bocayuva reflete a posição de setores de esquerda, inclusive ligados ao PDT, que veem a candidatura de Ciro como divisionista. Entretanto, é inegável o papel positivo na candidatura de Ciro Gomes, mesmo que não tenha possibilidade de chegar ao segundo turno, porque está fomentando o debate com um olhar para o futuro e não, para o passado, a marca da polarização Lula versus Bolsonaro.