A crise humanitária em Gaza solidificou posições enraizadas no mundo em desenvolvimento quanto ao conflito israelense-palestino. A maioria apoia a criação do Estado da Palestina
O jornalista Henry Foy, correspondente do Financial Times em Bruxelas, instiga a reflexão sobre a nova conjuntura internacional a partir da guerra de Gaza, que o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu disse, ontem, que será de longa duração. Ou seja, não deve se encerrar enquanto Israel não invadir a Faixa, eliminar o Hamas e restabelecer seu controle sobre toda a região, a exemplo do que já ocorre na Cisjordânia — apesar da existência de uma enfraquecida Autoridade Palestina.
Segundo Foy, o apoio incondicional do Ocidente a Israel, especialmente Estados Unidos, Reino Unido e União Europeia, envenenou os esforços para isolar a Rússia e obter apoio dos países em desenvolvimento em favor da Ucrânia. A reação implacável dos israelenses ao ataque terrorista do Hamas, em 7 de setembro, desconstruiu a narrativa do Ocidente em relação às violações de direitos humanos cometidas pela Rússia em Donetsk e outras regiões ocupadas por suas tropas.
“Na enxurrada de visitas diplomáticas de emergência, videoconferências e chamadas, os funcionários ocidentais foram acusados de não defender os interesses de 2,3 milhões de palestinos na sua pressa de condenar o ataque do Hamas e apoiar Israel”, destacou o analista do Financial Times. Isso teria corroído esforços diplomáticos para que a Índia, o Brasil e a África do Sul endurecessem o discurso contra o líder russo Vladimir Putin, com base na necessidade de defender uma ordem global em que as regras do direito internacional fossem respeitadas.
A apesar da generalizada condenação ao ataque de surpresa do Hamas, principalmente à morte e sequestro de civis, a crise humanitária na Faixa de Gaza solidificou posições enraizadas no mundo em desenvolvimento quanto ao conflito israelense-palestino. A maioria desses países apoia a posição oficial da ONU, favorável à criação do Estado da Palestina independente de Israel. “Todo o trabalho que fizemos com o Sul Global [sobre a Ucrânia] foi perdido. Esqueça sobre regras, esqueça a ordem mundial. Eles nunca vão nos ouvir novamente”, lamentava um diplomata do G7 ao jornalista britânico. O Grupo dos Sete é formado por Alemanha, Canadá, Estados Unidos, França, Itália, Japão e Reino Unido, com a União Europeia de observadora.
A maioria dos países em desenvolvimento sempre apoiou a causa palestina pelo prisma da autodeterminação e vê com desconfiança o domínio global dos EUA, o aliado principal de Israel. Os países árabes, inclusive aqueles que têm boas relações com o Washington e Tel Aviv, acumulam ressentimentos. Não são apenas os decorrentes da antiga ordem colonial, nem fruto de intervenções mal-sucedidas no Iraque, na Síria e na Líbia. Nesse caso de Gaza, estão diretamente ligados ao tratamento dado pelas potências ocidentais ao povo palestino.
Direitos humanos
Ao contrário, Rússia e China cultivam laços históricos com os palestinos. O presidente da Rússia, Vladimir Putin, na terça-feira, durante a reunião com o líder chinês XI Jinping, em Pequim, agarrou com as duas mãos a oportunidade de questionar o presidente dos EUA, Joe Biden, que adota dois pesos e duas medidas em relação à Ucrânia e à Faixa de Gaza. “O que dissemos sobre a Ucrânia deve se aplicar a Gaza. Caso contrário, perdemos toda a nossa credibilidade”, lamentou o diplomata do G7, segundo o jornalista do Financial Times.
Há pouco mais de um mês, na reunião do G20, em Nova Déli, Biden e outros líderes ocidentais conclamaram os países em desenvolvimento a condenar os ataques da Rússia a civis ucranianos, respeitar a Carta da ONU e o direito internacional. Desde o último domingo, porém, endossam incondicionalmente as ações de Israel na Faixa de Gaza, onde os civis estão sem água, eletricidade, gás de cozinha, comida e remédios.
A ordem global pós II Guerra Mundial não funciona para o mundo árabe, inclusive para a Jordânia e o Egito, que mantêm relações com Israel. Na União Europeia, o incomodo também começa a crescer, sobretudo depois de a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, viajar para Israel sem um mandato dos 27 estados-membros do bloco e não tratar da questão humanitária. Dublin, Madri e Luxemburgo queixaram-se de seu discurso em Tel Aviv.
Preocupada, a França começou a se movimentar em parceria com o Brasil, que protagoniza os esforços humanitários na presidência do Conselho de Segurança da ONU. Teme que a Rússia não esteja mais interessada em conter seus aliados na região, sobretudo o Irã. A crise de Gaza ofusca a guerra da Ucrânia e desloca recursos dos EUA para Israel, além de neutralizar a narrativa em relação às violações de direitos humanos pelo Exército russo.
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O presidente brasileiro defendeu a taxação de operações financeiras de super-ricos, para financiar o combate…