Nas entrelinhas: Bastião da conciliação

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Renan pretende reunir os líderes dos partidos no Senado para discutir os prazos e a proporcionalidade da composição da comissão especial do impeachment

Discípulo “incondicional” de Capistrano de Abreu, o primeiro a valorizar a importância do “povo capado e recapado, sangrado e ressangrado” na formação histórica do Brasil, José Honório Rodrigues, falecido em abril de 1987, aos 73 anos de idade, era um historiador liberal-democrata de formação anglo-saxã. Na coletânea Conciliação e reforma no Brasil: interpretação histórico política (Civilização Brasileira, 1965), Honório Rodrigues mostrou como a concentração do poder político por um grupo conservador pode impedir a democratização da política, frustrando as grandes mobilizações populares, como aconteceu em vários momentos da história do Brasil.

Honório Rodrigues era um crítico da “política de conciliação” que viabilizou a construção do Estado nacional brasileiro e a preservação da nossa integridade territorial, e que foi muito bem retratada por Joaquim Nabuco, no livro Um estadista no Império (H.Garnier, 1899). Considerava a política de conciliação um artifício das elites políticas para absorver elementos divergentes e, ao mesmo tempo, fazer pequenas e mínimas concessões à maioria da sociedade — e manter o status quo. Assim, perpetuaram-se as oligarquias no poder, mediantes alianças e pactos perversos. “O povo brasileiro é uma vítima, um derrotado no processo histórico”, escreveu.

Para ele, a independência poderia ter sido uma revolução, de modo a fundar as bases nacionais em terreno popular e liberal, mas foi derrotada. Não significou uma ruptura, mas a continuidade da ordem privilegiada das elites da época. Em 1822, e também nas décadas de 1830 e 1840, em 1889, 1930, 1945, 1961 e 1964 deu-se o mesmo. “Os poderes dominantes tiveram sempre força para conter as aspirações profundas de mudança e reverter os movimentos de modo a sustentar seu sistema, e seus privilégios”, diagnosticou num dos ensaios da coletânea, intitulado Teses e antíteses da História do Brasil.

Considerava o populismo “uma espécie de primitivismo político (…), um instrumento de agitação irresponsável, de meio desordenado de degradação da política e dos políticos”. Dizia que foi um entrave ao crescimento ordenado e eficiente nas décadas de 1950 e 1960: “A campanha de luta e agitação (…) desgastou o progressismo que se vinha formando e criou barreiras intransponíveis (…) O radicalismo vindo de cima, que mais agitava do que propunha construir(…) uma pedra no caminho da reforma e do progresso nacional. Não uniu, dividiu”.

Esse resgate de sua obra vem a propósito da tramitação do pedido de impeachment da presidente Dilma Rousseff no Senado, a vetusta Casa do Marques de Paraná, o mineiro Honório Hermeto Carneiro Leão, que recebeu esse título sem conhecer o estado. Incestuoso, a favor da pena de morte e da escravidão, suspeito de enriquecimento ilícito, Carneiro Leão construiu fortuna em Além Paraíba (MG), onde tinha 200 escravos e 190 mil pés de café. Em 1853, liderou o famoso “Gabinete de Conciliação”, que uniu conservadores e liberais numa “ponte de ouro”, na qual os “saquaremas” faziam oposição aos “luzias” nas províncias e vice-versa, mas todos apoiavam a monarquia e a escravidão.

Comissão
Foi essa política que o PT procurou pôr em prática ao chegar ao poder. Buscando alianças com as oligarquias regionais, que sempre estiveram muito bem representadas no Congresso por senadores e deputados cujos sobrenomes dispensam apresentação. Graças a ela, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, conseguiu mudar a correlação de forças no Senado nas eleições de 2006 e 2010. Essa estratégia, porém, foi implodida pela presidente Dilma Rousseff, que desagregou a base do governo na Câmara. A Operação Lava-Jato, a crise econômica e o povo nas ruas fizeram o resto. O resultado final foi a aprovação do pedido de impeachment pela Câmara, por ampla maioria.

O Senado brasileiro, porém, ainda é o bastião da política de conciliação, que continua vivíssima. “Nós temos pessoas que pedem para agilizar o processo, mas nós não podemos agilizar o processo de tal forma que pareça atropelo ou delongar de tal forma que pareça procrastinação”, disse Renan Calheiros (PMDB-AL), ontem, a propósito da tramitação do pedido de impeachment aprovado pela Câmara. Hoje, pretende reunir os líderes dos partidos no Senado para discutir os prazos e a proporcionalidade da composição da comissão especial do impeachment, que terá 21 votantes. O Palácio do Planalto ainda pensa em controlar a comissão, que terá poder para questionar os termos do pedido de impeachment e, assim, dificultar sua aprovação em plenário. Para isso, precisaria refazer suas pontes com as oligarquias, com as quais o vice-presidente Michel Temer também já negocia um “governo de conciliação nacional”.

Luiz Carlos Azedo

Jornalista

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