Nas entrelinhas: As eleições municipais e a disputa da Presidência

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A tese do poder local como forma de acumulação de forças alimenta o hegemonismo e a partidarização das políticas públicas nos governos de esquerda

Historicamente, o auge do poder local no Ocidente se deu durante o feudalismo, após a desintegração do Império Romano, quando era mantido de forma absoluta e implacável pelo senhor feudal, que possuía exército, cobrava impostos e exercia a justiça. No Brasil, o que houve de mais semelhante foi a estrutura colonial escravocrata dos engenhos de açúcar, em torno do qual se constituiu a elite brasileira mais abastada da época, com sua casa grande, onde vivia o senhor de engenho, toda a sua família e eventuais agregados; e a senzala, o “depósito” de seus escravos.

“Casa Grande & Senzala” (Global Editora), do pernambucano Gilberto Freyre, lançado em 1933, descreve a formação desse patriarcado brasileiro, com raízes ainda hoje influentes. Na esquerda, criou-se o mito de que a conquista do “poder local” seria a forma de acumulação de forças para se chegar ao poder central. O apoio de prefeitos é muito importante para a eleição de governadores e do presidente da República, mas não é uma lei de gravidade. Fernando Henrique Cardoso, ironicamente, afirma que é mais fácil ser presidente da República do que prefeito de São Paulo. Refere-se à frustração de ter perdido a eleição para Jânio Quadros.

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva nunca disputou uma prefeitura; depois de se candidatar ao governo de São Paulo, em 1982, e ficar em quarto lugar, com 10% dos votos, somente pleiteou a Presidência da República. Perdeu em 1989, 1994 e 1988. Chegou lá em 2002 e, agora, está no terceiro mandato. Se dependesse do número de prefeitos do PT, a maioria eleitos na aba do seu boné, nunca chegaria ao Palácio do Planalto.

O mito do “poder local” como forma de acumulação de forças por parte da esquerda é uma derivação da estratégia gramsciana de “guerra de posições”, adotada pelo Partido Comunista Italiano após a 2ª Guerra Mundial. Regiões que haviam sido libertadas do fascismo pelos “partigiani” tornaram-se redutos comunistas, como a Emília-Romanha, com destaque para a cidade de Bolonha, verdadeiro laboratório das políticas públicas dos comunistas.

Em 1999, depois de ter sido governada pela esquerda durante 54 anos ininterruptos, Bolonha elegeu um prefeito de centro-direita, mas logo voltou ao controle da esquerda. Eleito em 2021, Mateu Lepore, jovem líder do Partido Democrático, de 44 anos, nem chegou a militar no antigo PCI.

Hegemonismo

No Brasil, a tese do poder local como forma de acumulação de forças alimenta o hegemonismo e a partidarização das políticas públicas nos governos de esquerda, talvez a principal razão de desgaste do PT à frente de cidades como Porto Alegre, São Paulo, Goiânia, Vitória, Recife e Aracaju. Há incompatibilidade entre o hegemonismo, a  renovação política e a formação de amplos governos de coalizão. De certa forma, o fato de o PT apoiar a reeleição de Eduardo Paes (PSD) à Prefeitura no Rio de Janeiro representa outro paradigma: alianças mais amplas e menos hegemonismo.

O caso de Guilherme Boulos (PSOL), em São Paulo, também é uma mudança no comportamento petista, imposta pelo presidente Lula, mas com sinal trocado. Boulos está à esquerda de lideranças como Marta Suplicy, sua vice, e o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, ambos ex-prefeitos petistas. Sua grande dificuldade no segundo turno, qualquer que seja o cenário, será ampliar as alianças. A frente que o apoia terá que renunciar ao hegemonismo e oferecer participação aos novos aliados num governo de coalizão.

Poder local pode ser de qualquer tendência. O PSD do ex-prefeito Gilberto Kassab talvez eleja mil prefeitos e se equipare ao MDB, que ainda é o partido mais influente nos municípios brasileiros. No atacado, principalmente nas grades cidades, a eleição municipal indica uma tendência do eleitorado, por sinal, mais conservadora do que progressista, mas seu resultado não sacramente a conquista do poder central dois anos depois. Fosse assim, Jair Bolsonaro (PL) não teria sido eleito presidente da República, em 2018, e Simone Tebet (MDB), hoje, estaria na Presidência.

Por ironia, quem entende mesmo de poder local são os políticos do velho patriarcado brasileiro. É o caso do deputado estadual Theodorico Ferraço (PP), que disputa a prefeitura de Cachoeiro de Itapemirim (ES), a “capital secreta do mundo”, aos 86 anos, com chances de voltar à prefeitura pela quinta vez. O velho cacique político capixaba destacou-se por apoiar a campanha pela eleição direta do presidente da República, em 1983, quando ainda era um deputado da antiga Arena.

Pesquisa Ipec divulgada nessa sexta-feira (4) com as intenções de voto para a Prefeitura de Cachoeiro, mostra Ferraço (PP) com 47% das intenções de votos, contra Diego Libardi (Republicanos), com 16%; Léo Camargo (PL), 16%; e Lorena Vasques (PSB), com 12%. Ferraço foi uma das fontes de inspiração do personagem Odorico Paraguaçu, de Dias Gomes, na novela O bem-amado. Ao se eleger pela primeira vez, 1970, prometeu construir um chafariz para fazer chover no Centro da sua calorenta cidade.

Luiz Carlos Azedo

Jornalista

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