É preciso identificar os riscos de uma narrativa que exalta o poder ‘por aclamação’, no qual a partição entre Executivo e Legislativo se tornaria desnecessária
Num artigo instigante publicado ontem, na Folha de S.Paulo, o cientista político e professor da Universidade Federal de Pernambuco (UFP) Marcos André Mello, ex-professor visitante do Massachussets Institute of Technology (MIT) e da Universidade Yale, chamou a atenção para o que chamou de “pluralismo polarizado”, no qual o centro político estaria sendo centrifugado pela radicalização dos partidos e do eleitorado. Inspirou-se nas análises do cientista político italiano Giovanni Sartori (1924-2017) sobre a Alemanha de Weimar, o Chile de Allende, a Itália do pós-guerra e a França da 4a República.
Sartori formou-se pela Universidade de Florença, da qual foi professor emérito. Fundou a Rivista Italiana di Scienza Politica, que circula até hoje. Mudou-se para os Estados Unidos em 1976, onde assumiu a cadeira de Ciência Política da Universidade de Stanford. Três anos depois, tornou-se professor emérito do Departamento de Humanidades da Universidade de Columbia, em Nova York. Seu livro mais conhecido no Brasil é A Teoria Democrática Revisitada (Ática), no qual afirma que a democracia está ameaçada pelos democratas. Incapazes de diferenciar entre ideal e realidade, a pressão por mais participação e mais igualdade minaria a única democracia possível: a democracia representativa baseada na delegação do poder por meio da competição eleitoral e apoiada nas instituições do liberalismo político. Diez lecciones sobre nuestra sociedad en peligro, seu último livro, publicado em 2015, aborda as inquietudes geradas pela globalização, a busca pelo sistema eleitoral perfeito e os desafios da proteção da cidadania, porém ainda não possui tradução no Brasil.
O cientista político italiano foi um crítico da existência de modelos políticos universalmente válidos e atemporais. Seus estudos comparados questionam dogmas da teoria política contemporânea, como a própria representatividade proporcional, que podem se afigurar falíveis diante de condições históricas e circunstanciais que exijam soluções regionalizadas. Para Sartori, como destacou Mello, a tendência centrífuga de radicalização entre os partidos e no eleitorado não seria necessariamente consequência da representação proporcional, como muitos apontam no Brasil, ao criticar o grande número de partidos.
Dentre os elementos apontados por Sartori, Mello destaca “a existência de partidos ou movimentos antissistema que têm efeitos deslegitimadores (ou devastadores quando chegam ao poder)”. Mello fala também de uma “oposição bilateral”, que gera “polarização triangular”, e impede a formação de coalizões, incentiva o purismo partidário e a oposição irresponsável, além de gerar um imobilismo sistêmico. Traduzindo para o cenário eleitoral atual, o presidente Jair Bolsonaro seria o devastador pólo antissistêmico, enquanto o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, incapaz de ocupar o centro, e a fragmentada “oposição bipolar”, completariam a “polarização triangular”.
Amigos e inimigos
Como desatar esse nó? Talvez, a primeira premissa seja identificar os riscos oferecidos por uma narrativa que exalta o poder exercido “por aclamação”, no qual a partição do poder entre Executivo e Legislativo se tornaria desnecessária, tendo em vista que o líder aclamado poderia expressar corretamente a vontade do povo. Uma democracia pode excluir uma parte da população. Muitos regimes democráticos conviveram com a escravidão e a segregação (EUA) ou privaram a maioria da sociedade de muitos ou todos os direitos (África do Sul).
O jurista Carl Schmitt, ideólogo do nazismo, definia a política como a distinção entre amigos e inimigos. Segundo ele, todos os conceitos políticos possuem um sentido “polêmico”, têm em vista a possibilidade concreta da oposição de um grupo de pessoas a outros: “Termos como Estado, república, sociedade, classe (…) etc., são incompreensíveis se não se souber quem, in concreto, deve ser posto em causa, combatido, negado e refutado”, afirmava. Não faltam narrativas extremistas na política contemporânea: “a França para os franceses” (Marine Le Pen e a Frente Nacional), “Recupere o controle” (Brexit), “Nossa cultura, nosso lar” (Alternativa para a Alemanha), “Polônia pura, Polônia branca” (Partido Polonês da Lei e Justiça), “Mantenha a Suécia sueca” (Democratas Suecos). Nós, aqui, temos “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”.