Nas entrelinhas: Americanismo ou iberismo

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A redemocratização do país não modificou as características ibéricas da nossa política, embora a Constituição de 1988 tenha criado mecanismos para erradicar as suas principais mazelas

A política brasileira tem três características dominantes: o clientelismo, o fisiologismo e o patrimonialismo. Autores que estudaram o fenômeno, como Victor Nunes Leal, Sérgio Buarque de Holanda e Raymundo Faoro, as atribuem ao colonialismo ibérico, que organizou o Estado brasileiro muito antes da formação da nação. Essas características antecedem a formação dos partidos políticos brasileiros, que surgiram com ideias mitigadas para que o atraso pudesse pegar carona no moderno e manter-se.

Para dar um exemplo, voltemos à Independência, que está às vésperas do bicentenário. O Brasil tornou-se um Império em 1822, e não uma República, em razão do projeto de reunificação da Coroa portuguesa e dos interesses dos senhores de escravos em manter o tráfico negreiro, só não anexando Angola porque a Inglaterra não deixou. Mas Dom Pedro I outorgou a Constituição de 1824, ou seja, de cima para baixo, com um viés liberal. A introdução no texto constitucional do princípio da propriedade privada — uma conquista das revoluções burguesas — foi feita com o objetivo de proteger o regime escravocrata. Conseguiu: a escravidão somente foi abolida em 1888. Um ano depois, as oligarquias regionais que haviam se amalgamado à política do Gabinete de Conciliação do Marquês de Paraná, contendo revoltas e revoluções separatistas e/ou republicanas, derivaram para o regime republicano sob influência positivista da Escola Militar da Praia Vermelha. O povo assistiu à proclamação da República “bestificado”.

Mas o velho iberismo domou a República agrarista com seu atavismo, por meio das fraudes eleitorais dos “coronéis” para se manter no poder, contra a emergência das camadas médias e trabalhadores urbanos. Acabou levando o regime café com leite ao colapso. A revolução burguesa se completou pela via das armas, com a Revolução de 1930 e, depois, em 1937, com o Estado Novo. O ditador que representava a política castilhista do Brasil meridional, Getúlio Vargas, manteve-se no poder e derrotou as elites paulistas graças à aliança com as oligarquias do Norte e Nordeste, que novamente emergiram como a força política decisiva na Segunda República. O velho iberismo manteve-se firme e forte, ou seja: o clientelismo eleitoral, o fisiologismo político e o patrimonialismo como via de enriquecimento e preservação do poder. O populismo de Vargas, a força política e eleitoral dominante nos grandes centros urbanos, também assimilou as mesmas práticas, levando-as para os meios urbanos.

A lanterna
Até que a crise de financiamento do Estado e a necessidade de avançar no processo de modernização, em plena guerra fria, levaram à radicalização política. Entre dois projetos de desenvolvimento distintos, a democracia brasileira também se foi de roldão. Os militares protagonizaram novo projeto de modernização; para legitimá-lo e se manter no poder, reconstituíram o velho pacto com as oligarquias conservadoras. O clientelismo, o fisiologismo e o patrimonialismo sobreviveram num regime bipartidário cujo objetivo era institucionalizar o regime autoritário via “mexicanização” do país.

A redemocratização não modificou as características ibéricas da nossa política, embora a Constituição de 1988 tenha criado mecanismos para erradicar as principais mazelas, como aconteceu com o nepotismo nas carreiras de estado, de órgãos e de empresas públicas. O colapso do modelo de financiamento da política e dos partidos, via desvio de recursos públicos e caixa dois, com a Operação Lava-Jato, é resultante disso, num contexto de novo ciclo de modernização da sociedade brasileira com características hegemonicamente exógenas, decorrentes da globalização e de aceleradas mudanças tecnológicas.

É nesse cenário que nos deparamos com um novo projeto de “fuga para frente”, em contraposição às “utopias regressivas” à direita e à esquerda, do deputado Jair Bolsonaro e do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que ainda apostam no Estado como via de modernização no país. Sob a égide da ética na política, essa tendência busca um canal de expressão na política tradicional para participar da sucessão de 2018 e romper as muralhas do iberismo. Com ideias liberais pós-modernas, o novo americanismo se expressa pelas redes sociais, busca um candidato competitivo e um partido para chamar de seu. Lembra um pouco o aristocrático Carlos Maia e histriônico João da Ega, personagens de Eça de Queiroz, que seguem apressadamente, e sôfregos, a luz vermelha da lanterna do americano na escuridão da noite de Lisboa: “Ainda o apanhamos! Ainda o apanhamos!”.

Luiz Carlos Azedo

Jornalista

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