Nas entrelinhas: Alternância de poder

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O impeachment de Dilma difere muito do de Collor e também não pode ser comparado ao do golpe militar de 1964

O direito ao dissenso e a alternância de poder são pilares do regime democrático, ao lado do sufrágio universal: um cidadão, um voto. A forma de governo, o sistema eleitoral, a legislação partidária e todo o arcabouço jurídico do Estado de direito democrático podem variar de um país para o outro, mas haverá democracia se a Constituição garantir esses pilares e eles forem respeitados. Estamos na iminência de uma alternância antecipada de poder, que deve ocorrer no prazo de uma semana, pois tudo indica que a presidente Dilma será afastada do cargo por até 180 dias, até o julgamento final do impeachment. O vice Michel Temer assumirá a Presidência, provavelmente definitivamente.

Toda a polêmica sobre esse impeachment se concentra na discussão sobre a motivação do afastamento. Houve ou não crime de responsabilidade? A tese de Dilma Rousseff, reiterada todos os dias em discursos no Palácio do Planalto, é de que seu afastamento é um “golpe de Estado” porque não houve crime de responsabilidade. Esse não foi o entendimento da Câmara, por maioria bem acima da necessária, cuja decisão deve ser referendada pelo Senado. Essa é a proposta apresentada pelo relator da comissão especial do impeachment, senador Antônio Anastasia (PSDB-MG), ontem.

O relator efutou a tese do golpe de cabo a rabo: a denúncia contra Dilma está de acordo com a Constituição e deve ser aceita; o processo seguiu as leis e respeitou o direito a ampla defesa; o impeachment existe para evitar o “poder absoluto do governante”; houve materialidade e autoria das “pedaladas fiscais” e dos decretos ilegais de abertura de créditos suplementares; não houve “vício” na abertura do processo nem irregularidades na votação da Câmara. O parecer deve ser aprovado na sexta ou na segunda-feira, por ampla maioria. Estima-se que 21 dos 26 integrantes da comissão sejam favoráveis ao impeachment.

Dilma foi eleita pela voto direto, assim como Michel Temer. Fizeram parte da mesma coligação, embora pertençam a partidos diferentes. O impeachment não implica na substituição do presidente da República pelo seu principal adversário na eleição, no caso o senador Aécio Neves (PSDB-MG), mas por seu companheiro de chapa. Toda vez que isso acontece, aliados viram inimigos figadais, como aconteceu com Fernando Collor de Mello e Itamar Franco. Com Dilma e Michel, não é diferente.

O impeachment de Dilma difere muito do de Collor e também não pode ser comparado ao do golpe militar de 1964. No primeiro caso, o presidente foi afastado tão logo a Câmara aceitou o pedido e Collor renunciou antes da votação no Senado. Dilma não pode ser afastada pela Câmara por decisão do Supremo Tribunal Federal, já disse que não renuncia e a aprovação do impeachment pelo Senado virou uma novela. A comparação com o golpe de 1964 é um delírio: os militares apenas observam e o presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, não está nem aí para a história do Brasil.

Dissenso
A legitimidade do novo governo de Michel Temer está prevista na Constituição. Talvez seja mais produtivo para os que defendem a tese do golpe examinar os próprios erros para entender porque estão deixando o poder antes da hora. Nesse aspecto voltamos ao ponto de partida. Todo esse drama tem a ver com tentativa de se manter no poder a qualquer custo, por um longo tempo. Vejamos: o presidente Lula deixou o poder com a economia superaquecida (7,5% de crescimento do PIB em 2010), o que lhe permitiu fazer uma sucessora sem experiência parlamentar e eleitoral.

Seu objetivo era afastar de cena possíveis concorrentes para voltar ao poder em 2014. A manobra deu errado porque Dilma resolveu se candidatar à reeleição. E, para sair vitoriosa do pleito, manipulou a economia e mentiu para os eleitores. Tudo isso seria do jogo democrático se não houvesse o petrolão, anabolizando a campanha eleitoral para evitar a alternância de poder. Provocou uma crise tão grande que seu governo capotou na primeira curva, ao mesmo tempo em que o escândalo da Petrobras atingiu em cheio o ex-presidente Lula, ministros e parlamentares de sua base. A crise provocada por isso é tão profunda que a saída encontrada pelos políticos foi afastá-la do poder antes das eleições de 2018.

Nesse processo, foi decisivo o grande dissenso que se formou na sociedade e se traduziu em gigantescas manifestações contra o governo e o próprio Congresso. Majoritário na sociedade, exigiu o impeachment de Dilma e a punição dos políticos envolvidos na Lava-Jato. É nesse ambiente que a alternância de poder, possibilidade prevista para 2018, foi antecipada. Mas é uma mudança apenas parcial: uma parte do atual governo está migrando para o novo governo, enquanto a oposição dele participa sem muita convicção do que está fazendo. A alternância de poder, porém, está apenas começando. Será uma transição difícil, das eleições municipais à sucessão de 2018. Frustrar expectativas é mais fácil do que realizá-las. E aí que mora o perigo.

Luiz Carlos Azedo

Jornalista

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