Nas entrelinhas: A alma e o cavalo

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“Este é o desafio de Fernando Haddad na campanha eleitoral: se passar por Lula perante os eleitores. Se esforça para isso, mesmo que o preço a pagar seja a perda da própria identidade política”

Para Miyamoto Musashi, o xogum que unificou o Japão, um guerreiro somente está derrotado quando a sua alma também se sente abatida. Enquanto o espírito não estiver derrotado, mesmo prisioneiro, estará disposto a continuar o combate. Entre os presos da Operação Lava-jato, quem traduziu esse ensinamento com precisão foi o executivo da OAS Léo Pinheiro, o delator do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva no caso do tríplex do Guarujá, ao explicar aos companheiros de cela que a ficha demorou a cair quando foi detido. Somente quando foi obrigado a dividir uma cela no presídio e fazer as necessidades fisiológicas no “boi”, como é chamado o equipamento sanitário das prisões, é que se convenceu da dura realidade de encarcerado comum.

Quem não se deu por vencido até agora, entre os condenados da Operação Lava-jato, é o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Há cinco meses nas dependências da Polícia Federal em Curitiba, o ex-presidente da República não entregou os pontos. Comanda a campanha do PT de sua cela improvisada — uma sala com banheiro, transformada em escritório político —, ditando a estratégia a ser seguida pela cúpula da legenda. Na segunda-feira, por exemplo, Lula se reuniu com o vice Fernando Haddad e comunicou que recorreria da decisão no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) que impugnou sua candidatura. Ou seja, ainda não desistiu de ser candidato.

Lula aposta no próprio carisma. Deixou isso muito claro para o ex-governador da Bahia Jaques Wagner, que disputa uma vaga ao Senado, quando o petista de maior prestígio entre os quadros do partido tentou convencê-lo a antecipar sua substituição na campanha, já se vão alguns meses. Nova tentativa foi feita pouco antes da convenção do PT, mas Lula outra vez rechaçou a proposta, com o argumento de que não haveria ninguém com mais prestígio do que ele próprio para unificar o partido e resgatar a base eleitoral histórica da legenda, que estava se dispersando. Os fatos deram razão a Lula, que insistiu na estratégia ao forçar seu registro.

Depois da impugnação da candidatura, nove entre 10 petistas acreditavam que Haddad sairia da conversa com Lula ungido como candidato à Presidência, tendo Manoela D’Ávila, do PCdoB, como vice. Enganaram-se: Lula comunicou ao ex-prefeito e aos dirigentes do PT que se manteria como concorrente, esticando a corda, mesmo sabendo que a sentença do TSE dava um prazo de 10 dias para a legenda oficializar a substituição. Como a curva do petista nas pesquisas é ascendente, a manutenção da candidatura reforça a narrativa da vitimização, agora nos programas de rádio e televisão, cujas regras o PT burla sistematicamente.

Se antes havia uma preocupação com o tempo que restará para fazer a fusão das imagens de Lula e Haddad e a capacidade desse estratagema garantir a transferência de votos de um para o outro, agora o temor é com os riscos de se inviabilizar o registro da nova chapa, cujo prazo se encerrará no próximo dia 11. Lula não é maluco: força a barra nos tribunais porque acredita que seu prestígio eleitoral pode alterar de tal maneira a correlação de forças na eleição que a substituição pura e simples levará Haddad para o segundo turno. Mesmo entre os adversários, essa possibilidade é considerada.

Kagemusha

Quando a substituição ocorrer, a dúvida é se a alma de Lula vai vestir a armadura e montar no cavalo, como aquele personagem do filme Kagemusha, a Sombra do Samurai, de Akira Kurosawa. A história se passa no século XVI, durante a guerra civil no Japão. Em 1572, Shingen Takeda (Tatsuya Nakadai) marcha em direção a Kyoto, cujo controle decidiria o destino da nação; Nobunaga Oda (Daisuke Ryu) e Ieyasu Tokugawa juntam-se para impedi-lo. Takeda cerca o forte de Tokugawa, o castelo Noda, durante dois anos. No meio desta guerra, um ladrão comum, por causa da semelhança surpreendente com Takeda, é escolhido para se fazer passar por ele, enquanto o verdadeiro chefe de clã fica a salvo.

Entretanto, Takeda resolve presenciar a tomada do castelo e é gravemente ferido. Ordena que seus conselheiros mais íntimos mantenham segredo sobre o fato e, caso morra, o ladrão tome seu lugar. Kagemusha, o sósia, é treinado para isso. Durante três anos, após a morte de Takeda, é tratado por todos, inclusive pelo filho do samurai e sua amante, como se fosse o verdadeiro chefe do clã. Poucos generais sabem a verdade, pois é importante que amigos e inimigos acreditem que Takeda esteja vivo.

Este é o desafio de Fernando Haddad na campanha eleitoral: se passar por Lula perante os eleitores. Se esforça para isso, mesmo que o preço a pagar seja a perda da própria identidade política. O ex-prefeito era visto como um petista diferente, mais ilustrado e afável, capaz de cair no gosto da classe média paulista, o que realmente aconteceu na campanha eleitoral de 2012 para a Prefeitura de São Paulo. Mas o encanto se quebrou por causa da Lava-Jato e do mau desempenho administrativo, que o levou à derrota ao concorrer à reeleição em São Paulo. Haddad reproduz o discurso raivoso do PT e toda a retórica de vitimização de Lula; ao fazer isso, porém, afasta os eleitores não petistas que precisaria atrair caso chegue ao segundo turno.