Nas entrelinhas: A tragédia de Capitólio é a alegoria de um desastre nacional

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O apagão de dados do SUS, que impossibilita uma avaliação precisa da propagação da variante ômicron da covid-19, não impede que as pessoas fiquem doentes

Muito usada por pensadores gregos, como Platão, autor da mais famosa delas, o Mito da Caverna, uma alegoria pode ter vários significados, que transcendem ao seu sentido literal. Representa uma coisa por meio da aparência de outra, uma metáfora ampliada. Com 10 pessoas mortas — todas já identificadas, a maioria da mesma família, ocupantes da lancha Jesus, atingida pelo desmoronamento de parte de uma das escarpas do grande cânion da represa de Furnas —, a tragédia de Capitólio (MG) é a alegoria de um desastre nacional anunciado.
Registrado por meio de vídeos e fotos de turistas que presenciaram a tragédia, o flagrante do acidente de Capitólio é chocante. Em circunstâncias normais, um passeio de lancha no local contrastaria fortemente com as imagens de desespero e dor de milhares de famílias desabrigadas pelas enchentes em diversas cidades mineiras, muitas das quais ainda submersas, repetindo o que ocorreu na Bahia há duas semanas. O que era para ser uma tarde de sábado magnífica se transformou na tragédia que comove o país, enquanto chuvas torrenciais castigam Minas Gerais.

Foi uma fatalidade. Entretanto, o gerenciamento de risco ensina que acidentes desse tipo não acontecem de uma hora para outra, são tecidos por meio de uma sucessão de fatos identificáveis e de consequências previsíveis. Contingências e erros acabam confluindo para um desfecho catastrófico. Em quaisquer circunstâncias, mesmo num período de seca, as rochas que desabaram se desprenderiam, porque a erosão progressiva da escarpa estava em curso irreversível. O fenômeno é muito estudado por geólogos. O Rio de Janeiro vive permanentemente esse tipo de problema, por causa de suas encostas, muitas delas ocupadas por favelas e/ou circundadas por habitações e logradouros. Ou seja, o acidente poderia ter sido evitado.

É uma metáfora com o que está acontecendo no país, neste começo de ano sob temporais. Fomos surpreendidos pela quarta onda da pandemia, que já chegou com tudo, conforme se pode observar por meios dos relatos de médicos e pelas imagens registradas no pronto-atendimento dos postos de saúde. O ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, utiliza um subterfúgio antiquado para esconder da opinião pública o que está acontecendo: tapar o sol com a peneira. O apagão de dados do SUS, que impossibilita uma avaliação precisa da propagação da variante ômicron, não impede que as pessoas fiquem doentes. Uma epidemia de Influenza H3N2, que chegou ao país muito antes do previsto, agrava ainda mais a situação.

Nas redes sociais, circula um vídeo de um bando de pequenos pássaros numa praia que se movimentam de forma sincronizada: quando as ondas vêm, eles se afastam do mar; quando se vão, eles se aproximam das águas. Sempre tem uma ave mais afoita ou um retardatário que acabam alcançados pelas ondas. Um gozador resolveu comparar essas imagens com o nosso comportamento diante da covid-19. A grande maioria participou de confraternizações de Natal e ano-novo. Os mais afoitos ou descuidados acabaram doentes. Agora, diante do avanço da ômicron, os desfiles de blocos e escolas de samba, os bailes e outros eventos de carnaval estão sendo cancelados. As viagens também.

Vacinação
Medidas de prevenção estão sendo tomadas pelas autoridades sanitárias, prefeitos e governadores, porém, contrastam fortemente com o comportamento negacionista do presidente Jair Bolsonaro, cujas atitudes são previsíveis. Estima-se que a quarta onda dure de dois a três meses, com base no que aconteceu na África do Sul, onde surgiu a variante ômicron. Naquele país, com 56 milhões de habitantes, em 106 dias, os casos subiram de dois mil para 20 mil por dia e, depois, voltaram para dois mil. Estudos mostram que essa variante é menos letal do que a delta, mas é preciso levar em conta a diferença de escala demográfica, pois o Brasil tem 212 milhões de habitantes, ou seja, caso haja um grande número de contaminados, a baixa letalidade, em termos quantitativos, pode representar muitos óbitos.

Muitas pessoas com a terceira dose de vacina estão contraindo e propagando a doença, a maioria de forma branda ou assintomática. Cerca de 25% dos brasileiros não tomaram sequer a primeira dose da vacina, principalmente as crianças; 33%, tomaram somente uma dose. É muita gente, o que compromete o controle da pandemia. Por isso, é grande o risco sanitário. Por causa do apagão de dados do SUS, não se sabe bem o que está ocorrendo em termos estatísticos, mas os indícios de que a economia já está sendo afetada pela situação sanitária são evidentes, devido ao número de pessoas afastadas do trabalho, o que deve agravar a recessão e complicar ainda mais a situação da população de baixa renda, que sofre com a fome e o desemprego.

Luiz Carlos Azedo

Jornalista

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