Nas entrelinhas: A pandemia e a vida banal

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Como será a via da igualdade de oportunidades e do acesso público à saúde, à educação, à cultura, ao saneamento e à mobilidade no pós-pandemia?”

Números do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados, divulgados ontem pelo Ministério da Economia, revelam que 331.901 vagas de trabalho com carteira assinada foram fechadas em maio. No trimestre, foi 1,478 milhão de empregos formais, desde março. Reflexo da pandemia no Brasil, que registrou a primeira morte em 17 daquele mês. O agravante é o fato de que o coronavírus também destruiu atividades produtivas no mercado informal, que funcionavam como válvula de escape para 36 milhões de trabalhadores sem carteira assinada.

Apenas uma parcela desses atingidos será capaz de se reinventar, porque economizou recursos para travessia, dispõe de conhecimentos ou condições de adquiri-los ou tem uma vocação inata para empreender e se adaptar às circunstâncias. Outra, a grande maioria, permanecerá dependendo da ajuda do governo para sobreviver, até que a economia volte a crescer numa escala capaz de absorvê-los, novamente, no mercado de trabalho, o que pode não acontecer. Infelizmente, nosso país tem uma tradição de descartar mão de obra e substituí-la nos ciclos de modernização, desde a abolição da escravatura.

É aqui que a relação entre o chamado “novo normal” e a “vida banal” se bifurcam. A superação das dificuldades pela via do esforço pessoal faz parte do imaginário da nossa sociedade, seja pelo serviço público, seja pela carreira profissional bem-sucedida no setor privado, ou por meio do empreendedorismo. Em época de confinamento, palestras e debates sobre esse assunto se multiplicam, com dicas e recomendações que funcionam como uma espécie de manual de sobrevivência na pandemia. Entretanto, a maioria dos que foram expelidos do mercado não terá a menor chance de encontrar uma saída imediata por essa porta. Uma dimensão da crise é o escancaramento da relação entre pobreza e desigualdades; a outra, como se sabe, são as ameaças à nossa democracia.

A propósito, o professor Pedro Cláudio Cunca Bocayuva, do Núcleo de Estudos de Políticas Públicas em Direitos Humanos da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), um velho amigo, me fez observações instigantes sobre a conexão entre os efeitos da pandemia e a chamada “vida banal” no cotidiano das periferias e favelas das grandes cidades brasileiras. É aí que o drama econômico e social da pandemia está se desenrolando da forma mais iníqua. Sem a esfera pública e suas políticas, adverte, a cautela no consumo, o empreendedorismo e a filantropia não dão respostas à pobreza, porque não levam em conta as desigualdades. E ainda prescindem da democracia.

Bandeira velha
Como será a via da igualdade de oportunidades e do acesso público à saúde, à educação, à cultura, ao saneamento e à mobilidade no pós-pandemia? A nova agenda proposta pela crise sanitária e econômica, segundo Bocayuva, passa não apenas pela renda básica, pressupõe o cooperativismo, a solidariedade no uso dos bens públicos, o compartilhamento de conhecimento e das inovações tecnológicas, as mudanças de padrão energético, de preservação ambiental e de garantia dos direitos sociais, em bases democráticas. Por toda a economia de serviços, cultura, educação, pesquisa, ensino, infraestrutura. Como num rap, conexões, fluxos, trânsitos, controles, uso do espaço, planejamento e instalação de equipamentos urbanos, retomada das atividades sociais, a produção, o consumo, os resíduos, a reposição e a reciclagem, para ele, tudo precisa ser repensado, no contexto das grandes mudanças em curso, das relações humanas à pesquisa.

De certa forma, o que está acontecendo nas favelas do Rio de Janeiro e periferias de São Paulo, em termos de busca de respostas e de autoproteção contra as iniquidades em que essas comunidades vivem, diante do avassalador avanço da pandemia, aponta para uma nova agenda, que não está sendo considerada. A velha agenda social-democrata e social-liberal para a pobreza, ou seja, a focalização dos gastos sociais nos mais pobres e os programas de transferência de renda, como o Bolsa Família, por incrível que pareça, está sendo capturada eleitoralmente pelo presidente Jair Bolsonaro.

Primeiro, com a distribuição do auxílio emergencial de R$ 600 aprovado pelo Congresso, que já lhe garantiu uma mudança de base de apoio, conquistando uma parcela do eleitorado de baixa renda do Nordeste, que lhe era hostil e tinha saudades do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. É gente que não se identificava com Bolsonaro pela via da narrativa ideológica — centrada na família, na fé e na ordem —, mas foi atraída naturalmente, pelo interesse material imediato. Ou seja, a velha agenda da esquerda está tão superada que passou às mãos de Bolsonaro. Como nos governos anteriores, porém, isso não significa uma solução duradoura para a população de baixa renda, porque não garante a superação das desigualdades e, sem outras medidas, a médio prazo, estreita ainda mais os gargalos da economia.

Luiz Carlos Azedo

Jornalista

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