”Se Deus soubesse o que acontecerá, o futuro seria uma verdade absoluta e não existiria liberdade de escolha. Entretanto, ainda não aconteceu. Por isso, é possível influenciá-lo“
Com direção primorosa de Fernando Meirelles, roteiro de Anthony McCarten e fotografia de Cesar Charlone, Dois Papas é um filmaço da Netflix, com interpretações impecáveis de Jonathan Pryce, no papel do cardeal Jorge Bergólio, que viria a ser eleito o papa Francisco, e Anthony Hopkins, aos 80 anos, encarnando o Papa Bento XVI, que surpreendeu o mundo com uma renúncia até então inimaginável. Os dois travam um duelo verbal no qual os fatos históricos e a ficção se desenrolam como uma espiral de hélice dupla, que simultaneamente descreve as personalidades de ambos e traduz velhas polêmicas sobre o livre-arbítrio e o poder da fé. É um filme que mostra a força e a importância do diálogo.
É a partir dele que sugiro uma reflexão sobre 2020. As comemorações de passagem de ano têm origem 3 mil anos antes de Cristo, na Babilônia. Duravam 11 dias, seis a mais do que as de Salvador neste ano. Incluíam procissões, ritos de fertilidade e sacrifícios. O ano-novo romano, que deu origem à comemoração mais universal (também existem o ano-novo chinês, o islâmico e o judaico), foi criado por Julio Cesar, 43 anos antes de Cristo, por meio de decreto que dedicou o primeiro dia do ano a Jano, o deus de duas cabeças das origens. É uma festa pagã, cujas superstições têm as mais diversas procedências, das oferendas à Iemanjá, de origem iorubá, ao costume tcheco de comer lentilhas. Como rito de passagem, porém, as comemorações de ano-novo nunca foram celebradas pela Bíblia, que condena a adoração falsa e os excessos das festas de fim de ano.
É uma das muitas contradições da doutrina católica com a própria fé dos cristãos, o fio condutor do diálogo entre Bergólio, um ex-jesuíta, e Joseph Aloisius Ratzinger, que ascendeu ao papado como grande teólogo conservador de João Paulo II. Não é à toa que o espaço vazio deixado pela Igreja, após as comemorações do Natal, acabou ocupado no Brasil pela alegria e pela energia espiritual do candomblé e da umbanda, que dominam o sincretismo do ano-novo. Para os cristãos, independentemente dos ritos, ano-novo é sinônimo de esperança e mudança, tem tudo a ver com o livre-arbítrio e o poder da fé.
Livre-arbítrio
A polêmica cristã sobre o livre-arbítrio surgiu no norte da África, no início do século V, entre Santo Agostinho e o monge celta Pelágio, por causa do batismo de uma criança. Os cristãos acreditavam que o batismo lavava as manchas do pecado original. Perlágio dizia que as crianças não precisavam ser batizadas, porque não tinham livre-arbítrio e, portanto, não pecavam. E se mais tarde escolhessem o caminho de Deus, nem precisariam ser batizadas. Agostinho de Hipona, que estudou filosofia grega em Cartago e somente foi batizado aos 33 anos, depois de retornar ao cristianismo que havia abandonado quando jovem, sustentou a tese de que era impossível escolher o caminho de Deus por vontade própria. Para isso, segundo ele, era preciso a ajuda de Deus, daí a importância do batismo.
No filme, a conversa entre os dois papas gravita em torno do livre-arbítrio e da vontade de Deus, porque Bergólio queria se aposentar e precisava da autorização do papa. Mas não sabia que Ratzinger tinha o mesmo desejo e via nele seu sucessor, embora divergissem em quase tudo. De forma subliminar, a conversa entre ambos gira em torno da doutrina da predestinação, desenvolvida por Agostinho: é impossível a escolha do caminho de Deus por vontade própria, para isso é preciso uma graça divina. Fora uma saída salomônica para a preservação do dogma do batismo, a graça redentora do pecado original, a partir da qual o livre-arbítrio é possível. Curioso é que a tese da predestinação foi adotada de forma radical pelos protestantes, principalmente os calvinistas, a partir do princípio de que Deus não falha, tudo está decidido por Ele. Não era essa, porém, a visão de Agostinho: a escolha de Deus não substitui a escolha humana, mas a possibilita.
Essa polêmica é o fio condutor da conversa entre os dois papas sobre a relação da Igreja com o mundo atual, entre ironias, piadas e dúvidas existenciais sobre a fé em Deus. O resultado do diálogo entre o conservador Ratzinger e o reformista Bergólio é a opção de ambos pela mudança. O primeiro era impopular, sendo até chamado de ex-nazista por sua passagem pela Juventude Hitlerista na Alemanha; o segundo, carrega a culpa de ter conciliado com a ditadura da Argentina, quando fora o chefe dos jesuítas, o que acarretou a prisão de alguns religiosos aos quais havia proibido de ministrar o sacramento, por fazerem oposição ao regime, o que serviu de justificativa para que fossem presos.
Embora Deus seja onisciente, para os teólogos, se Deus soubesse o que acontecerá, o futuro seria uma verdade absoluta e não existiria liberdade de escolha. Nesse caso, a própria bondade de Deus estaria comprometida e não teria sentido a vinda de Jesus para a Terra, tão celebrada pelo cristianismo nas noites de Natal. Entretanto, como o futuro ainda não aconteceu, ele não existe. Por isso, para o cristianismo, é possível influenciá-lo com rezas e ações no presente. O futuro é aberto às mudanças. Em tempos de terraplanistas e fundamentalistas, esse é o recado do filme para católicos e não-católicos. Feliz ano-novo.
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