Nas entrelinhas: A democracia precisa de um estadista na Presidência

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Se quiser melhorar sua governabilidade, Lula terá que incorporar os partidos democráticos que não o apoiaram no primeiro turno, em vez de jogá-los no limbo, como linha auxiliar do bolsonarismo

A linha de força da montagem do governo Lula, para que realmente seja um governo de ampla coalizão democrática, diante da margem estreita de sua vitória no segundo turno e da envergadura e poder de mobilização da oposição bolsonarista, é a velha política de conciliação. Não se pode inventar uma “nova política” para lidar com a necessidade de defesa da democracia e suas instituições e montar uma equipe ministerial em condições adequadas de governabilidade. O modus operandi será parecido com o do primeiro governo Lula, com a diferença de que a política com os governadores deverá ser ainda mais ampla e a incorporação institucional dos partidos. A força de Lula no Nordeste é a chave para a construção das alianças necessárias.

A velha política de conciliação, para frustração dos novidadeiros, é uma herança do Segundo Império, que se impôs na política nacional historicamente, como uma forma de resistência das forças políticas que controlam o Estado brasileiro, em razão do seu patrimonialismo e clientelismo. Mesmo depois da Proclamação da República, na qual o positivismo se disseminou como ideologia dominante, a conciliação foi a força hegemônica no parlamento brasileiro. Foi assim com o governo Bolsonaro, que evitou um impeachment graças às alianças que fez com o Centrão, e não será muito diferente no governo Lula. Se quiser melhorar a qualidade de sua governabilidade, Lula terá que incorporar também os partidos democráticos que não o apoiaram no primeiro turno, em vez de jogá-los no limbo, como uma oposição moderada, pois serão, inevitavelmente, linha auxiliar do bolsonarismo, com discurso mais corrosivo.

Um velho político conservador do Império, Honório Hermeto Carneiro Leão (1801-1856), o Marquês de Paraná, é o tataravô dessa criança. A maioria dos políticos de hoje nem ouviu falar dele, mas é um sobrenome que até hoje frequenta o nosso parlamento, como outros representantes do velho patronato brasileiro. Arthur Lira (PP-AL) e Rodrigo Pacheco (PSD-MG), no Senado e na Câmara, que pleiteiam a continuidade no comando das duas casas, são legítimos representantes dessa tradição política, enraizada no Nordeste brasileiro e em Minas Gerais. Obviamente, o presidente eleito Lula poderia confrontá-los, e articular outros nomes para comandar o Congresso, mais seria um erro crasso, o mesmo cometido pela presidente Dilma Rousseff. Se perder, a derrota poderá lhe custar o mandato.

Governadores
Olhar para o passado não custa nada, até porque a serventia da História só existe quando precisamos lidar com ela no presente. Carneiro Leão era um político do Regresso Conservador, que não conseguiu conter a Revolução Farroupilha (Rio Grande do Sul) nem evitar a eclosão da Sabinada (Bahia), da Balaiada (Maranhão) e da Cabanagem (Pará). A consequência foi a antecipação da maioridade de D. Pedro II, um golpe contra a Constituição articulado pelos liberais. Por isso mesmo, não houve imediato retorno à normalidade. Em 1841, o chamado Gabinete da Maioridade foi substituído pelo Gabinete Palaciano, de tendência regressista, que reformou o Código de Processo Criminal e restaurou o Conselho de Estado, símbolo do despotismo monárquico. Em 1º de maio de 1842, a Câmara Legislativa, de maioria liberal, foi dissolvida.

Isso provocou revoltas nas províncias de Minas Gerais e São Paulo contra o Gabinete Palaciano. Houve choques militares em São Paulo; em Minas Gerais, os liberais, denominados de luzias, advogavam que a luta era em prol da “Constituição do Império” e defendiam a descentralização. A última revolta provincial, entretanto, eclodiu em 7 de novembro de 1848, em Pernambuco: a Revolução Praieira, duramente reprimida. A consolidação do Segundo Reinado se deu porque o Marquês do Paraná, em 1853, para evitar conflitos políticos que remontassem aos anos de 1830 e 1840, resolveu acalmar as ruas e buscar uma aproximação com os liberais. Para convencer membros do Partido Liberal a aderir ao Gabinete da Conciliação, promoveu uma ampla reforma eleitoral, aprovada em 1854, com o voto distrital, que favoreceu a eleição de representantes de minorias políticas; e as incompatibilidades, que impediam a eleição de funcionários públicos nos distritos onde exercessem suas funções. Nas eleições de 1856, houve uma renovação de 67% dos políticos, o chamado Renascer Liberal. A política de conciliação, porém, sempre foi muito criticada desde aquela época. O deputado Holanda Cavalcanti, liberal pernambucano, de chacota, dizia que “não há nada mais parecido com um saquarema do que um luzia no poder”.

Na República, permaneceu sendo uma fórmula eficaz em todos os momentos de crise, em que a democracia esteve em jogo. Quando a política não deu conta do recado, houve rupturas: 1889, 1930 e 1964. O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, para justificar sua aliança com o que chamava de “atraso”, mandava seus ministros lerem Um estadista no Império, de Joaquim Nabuco, o mais ardoroso defensor da “ponte de ouro” entre liberais e conservadores, para que entendessem sua conturbada relação com o falecido senador Antônio Carlos Magalhães (PFL-BA), o grande líder conservador do Senado. De certa forma, com sinal trocado, Lula da Silva repetiu a estratégia, em aliança com o ex-presidente José Sarney (PMDB-AP). Está na hora de reinventá-la, com novos atores, como Simone Tebet e os governadores Eduardo Leite (RS), Raquel Lira (PE), Tarcísio de Freitas (SP), Romeu Zema (MG) e Cláudio Castro (RJ), para isolar o golpismo.

Luiz Carlos Azedo

Jornalista

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