Nas entrelinhas: A “alma imoral” das mulheres rejeita o machismo de Bolsonaro

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A moralidade é oposta às forças transgressoras da alma, que vive do que a sociedade reconhece como imoral, diz o rabino. Em todas as famílias, a mulher ou a filha votam com a alma, em quem quiser

Simone Lucie-Ernestine-Marie-Bertrand de Beauvoir (1908-1986), como seu próprio nome sugere, nasceu em berço de ouro, foi educada por professores particulares e estudou filosofia na Sorbonne, onde conheceu o filósofo Jean-Paul Sartre (1905-1980), seu companheiro, com quem foi sepultada seis anos após a morte do “marido”. Viveram juntos, mas nunca se casaram. Considerada a “mãe do moderno movimento das mulheres”, quando escreveu O Segundo sexo, sua obra seminal, não se via como feminista. Sua motivação foi responder à pergunta “O que é uma mulher?”.

A primeira onda do feminismo foi a luta pelo sufrágio universal, desde o final do século XIX, porque as mulheres não tinham o direito de votar; a segunda, foi a luta contra a discriminação no lar, no trabalho e os preconceitos, que não podiam ser alterados apenas pela letra da lei. Simone de Beauvoir elevou o movimento feminista, do qual não fazia parte, a um novo patamar na década de 1960, ao trazer ao debate questões subjetivas que estavam associadas ao existencialismo. Ela diferenciava o ser fêmea do ser mulher.

O papel tradicional de esposa, de dona de casa e de mãe aprisionava as mulheres numa condição em que era afastada de outras mulheres e tinha a vida definida pelo marido. Simone via o “eterno feminino” como uma justificativa para essa desigualdade e buscou o “ser humano na condição feminina”, isto é, a alteridade das mulheres. Ou seja, no reconhecimento de que são pessoas com culturas singulares e subjetivas que pensam, agem e entendem o mundo de suas próprias maneiras. Reconhecer a alteridade é o primeiro passo para a formação de uma sociedade justa, equilibrada, democrática e tolerante, onde todas e todos possam expressar-se, desde que respeitem também a alteridade alheia.

Esta é a muralha da rejeição que separa o presidente Jair Bolsonaro da maioria das mulheres. Não reconhece a possibilidade de as mulheres escolherem entre si mesmas, como mulher, fundamentalmente diferente do homem e, ao mesmo tempo, a si mesmas como um membro igual da raça humana. Vem daí a sua misoginia, e sua dificuldade de conviver, por exemplo, com mulheres parlamentares que pensam diferente e não seguem sua liderança, e com jornalistas que ousam fazer perguntas incômodas ou confrontá-lo com suas próprias opiniões.

O resultado aparece nas pesquisas claramente: Na pesquisa do Instituto Paraná, o que mais se aproximou do resultado do primeiro turno, divulgada na quinta-feira, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, aparece com 47,6% de intenções de votos e o presidente Jair Bolsonaro com 44,1%. Lula perde entre os homens (46,2% contra 47,3%), em empate técnico, mas ganha com uma vantagem de quase oito pontos entre as mulheres (48,9% a 41,1%). Bolsonaro tem feito um enorme esforço para reverter essa diferença, principalmente entre as mulheres evangélicas, mas são muitos votos que precisam conquistados: Dos 156.454.011 de eleitores aptos, 82.373.164 (52%,65) são mulheres. São aproximadamente 6,4 milhões de votos de diferença.

Nudez e transgressão

Há um detalhe importante, que não aparece nas pesquisas: nas famílias bolsonaristas, muitas esposas e filhas votam em Lula. Quanto maior a pressão, mais consolidado esse voto, porque é o tipo da coisa que reforça a imagem machista e misógina de Bolsonaro e, ao mesmo tempo, desperta a alma feminina transgressora dos padrões de dominação masculina. A propósito dessa contradição, a cultura judaica, tão perseguida, tem muita coisa a nos ensinar. Para o rabino Nilton Bonder, a “alma” seria nada mais que o componente consciente da necessidade de evolução, a parcela de nós capaz de romper com os padrões e com a moral conservadora. Sua natureza seria, portanto, transgressora, por não corroborar os interesses da moral tradicionalista.

Um dos exemplos utilizados pelo rabino para explicar a tese, no livro a Alma Imoral, que serviu de roteiro para o monólogo interpretado por Clarice Niskier, de muito sucesso, é justamente a relação corpo-alma. Ao longo dos anos, a cultura afirmou ser o corpo a fonte do imoral e a alma, do moral. O primeiro ato de Adão e Eva como seres conscientes foi cobrir o corpo nu, dando a noção de indecência e imoralidade do corpo, frente ao despertar da alma supostamente moral. No entanto, é justamente o contrário. A alma é imoral e não o corpo.

A tradição tem três eixos: a família, os contratos sociais e as crenças. A primeira foi moldada para atender às necessidades reprodutivas; os segundos, para preservação da vida humana; as terceiras, para respaldar tudo isso no plano ideológico. O processo civilizatório é a transgressão das tradições, ultrapassando-as, geração após geração, porém, ao mesmo tempo, preserva esses objetivos vitais.

No teatro, Clarice Niskier apresenta o monólogo em estado de nudez real e, ao mesmo tempo, simbólica. A alma desnuda, em conflito com o corpo vestido, coloca em xeque dogmas religiosos. “A psicologia evolucionista aponta o corpo como o gerador da moralidade. É justamente para dar conta de seus interesses de preservação que a moralidade é engendrada. Esta moralidade é oposta às forças transgressoras da alma. Assim, a alma vive do que a sociedade reconhece como imoral”, argumenta o rabino. Traduzindo, como o voto é secreto, em todas as famílias, a mulher ou a filha votam com a alma, em quem quiser, independentemente das vontades de maridos, namorados e irmãos.