Nas entrelinhas: Lacalle e Boric deixaram Lula numa saia justa

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Ao tratar o regime autoritário da Venezuela como uma “narrativa”, o que colocou a democracia em segundo plano, Lula desnudou o ponto fraco de sua política externa: afastar o Brasil dos EUA

É preciso ter cuidado para não jogar a criança fora com a água da bacia. A reunião dos presidentes sul-americanos, oito anos após o colapso da União de Nações Sul-Americanas (Unasul), ontem, em Brasília, foi um passo importante para a integração dos países do subcontinente, num momento de reestruturação das cadeias globais de valor e de uma mudança importante na conjuntura política mundial, na qual a centralidade da democracia está se impondo no Ocidente.

O erro político do presidente Luiz Inácio Lula da Silva ao tratar o regime autoritário da Venezuela como uma “narrativa”, o que colocou a democracia em segundo plano, ofuscou a relevância do encontro e desnudou o ponto fraco de sua política externa: a busca de alianças que podem afastar o Brasil dos Estados Unidos. Os presidentes do Uruguai, o conservador Luis Lacalle Pou, e do Chile, Gabriel Boric, de esquerda, criticaram a fala de Lula e, duramente, a falta de democracia e violações aos direitos humanos na Venezuela.

Lacalle Pou aproveitou o desgaste de Lula e rejeitou a retomada de instituições de integração regional como a Unasul, criada em 2008, quando os ventos políticos no continente sopravam para a esquerda. “Precisamos parar com essa tendência de criar organizações, vamos à ação”, declarou. Lula havia proposto reorganizar a organização na abertura do encontro. O uruguaio registrou em vídeo seu discurso e divulgou nas redes sociais, quebrando um acordo de que a discussão entre os presidentes seria a porta fechadas.

A repercussão negativa foi imediata e fragilizou Lula. Lacalle Pou fora muito contundente: “Ora, se há tantos grupos no mundo que estão tratando de mediar para que a democracia seja plena na Venezuela, para que se respeitem os direitos humanos, para que não haja presos políticos, o pior que podemos fazer é tapar o sol com a mão”.

Após a abertura, foi a vez de Gabriel Boric roubar a cena. Defendeu o reingresso da Venezuela nos encontros multilaterais, mas criticou a fala de Lula sobre o regime de Maduro. O presidente chileno, em entrevista nos jardins do Itamaraty, revelou o teor de sua intervenção na reunião: “Manifestei, respeitosamente, que tenho uma discordância com o presidente Lula quando ele diz que a situação dos direitos humanos na Venezuela é uma construção narrativa. Não é uma construção narrativa. É uma realidade séria”. Cobrou “uma posição firme e clara de que os direitos humanos sejam respeitados sempre e em todos os lugares, independentemente do viés político do governante de plantão”.

Depois do encontro, em coletiva, Lula minimizou o desgaste, ao ser questionado sobre as críticas dos colegas ao regime e ao presidente venezuelano. “O Maduro faz parte deste continente. Houve muito respeito com a participação do Maduro. Ninguém é obrigado a concordar com ninguém. É assim que a gente vai fazendo”, respondeu. “O fato de ter dois presidentes que não concordaram, não sei em que jornal eles leram. Eu disse que, aqui, não foi convocada uma reunião de amigos do Lula. Foi convocada uma reunião de presidentes para construir um órgão dos países”, afirmou.

Integração regionali

A reunião convocada por Lula não deixa de ser um êxito da diplomacia brasileira. Além de Maduro, Lacalle e Boric, participam do encontro o presidente da Argentina, Alberto Fernandéz; da Bolívia, Luís Arce; da Colômbia, Gustavo Petro; do Equador, Guillermo Lasso; da Guiana, Irfaan Ali; do Paraguai, Mário Abdo Benítez; e do Suriname, Chan Santokhi. A presidente do Peru, Dina Boluarte, que vive uma crise institucional, foi representado pelo presidente do Conselho de Ministros, Alberto Otárola.

No encerramento, Lula fez um apelo aos demais presidentes: “Deixamos que as ideologias nos dividissem e interrompessem o esforço da integração. Abandonamos canais de diálogo e mecanismos de cooperação e, com isso, todos perdemos”, afirmou. Ficou acordado que em 120 dias será discutido um roteiro para a integração da América do Sul, cujos países vivem uma situação muito semelhante à do Brasil. Estão na esfera de influência geopolítica dos Estados Unidos, com exceção da Venezuela, mas têm como principal parceiro comercial a China.

Os maiores parceiros comerciais de Pequim na América do Sul são o Brasil e o Chile, onde a balança comercial suplanta a dos EUA duas vezes. A seguir vêm Peru, Argentina, Uruguai e Venezuela. Somente na Colômbia o comércio com Washington suplanta o chinês.

A proposta de Lula de criar um mercado integrado de 450 milhões de pessoas, com uma moeda unificada, a exemplo do que fez a União Europeia (UE), não agrada nem um pouco aos EUA, porque seguramente seria lastreada principalmente no yuan e enfraqueceria o dólar.

A presença da China na América Latina é uma realidade. Ao contrário das empresas norte-americanas, as chinesas não têm medo de economias caóticas e buscam oportunidades como as encontradas na província argentina Jujuy, a 900km de Buenos Aires, com quase 800 mil habitantes. O lítio de suas salinas brancas é mais fácil de ser explorado do que na Bolívia e no Peru.

A oeste, a estrada que cruza a província, construída pelos chineses, atravessa os Andes até o Chile e chega ao Pacífico. A leste, liga a Argentina ao Paraguai e, depois, ao Brasil. Entretanto, os EUA estão desvinculando suas cadeias de valor da China para criar cadeias regionais, principalmente de produtos eletrônicos e semicondutores. É uma briga de cachorro grande, mas não deixa de ser uma oportunidade para a América Latina.

Em tempo: As agressões a jornalistas por parte de seguranças de Maduro e brasileiros, entre as quais a veterana repórter da Globo Delis Ortiz, muito experiente em coberturas presidenciais no Brasil e no exterior, são inadmissíveis, ainda mais no Itamaraty. Mostram a cara do regime venezuelano e desgastam ainda mais o governo Lula.

Luiz Carlos Azedo

Jornalista

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