Era noite de segunda-feira, 15 de outubro de 1962, Elias, Expedito e José foram amarrados e jogados no rio. Os três morreram afogados. Mais três viagens seriam realizadas
Treze policiais envolvidos direta ou indiretamente no episódio em que um agente jogou um homem dentro de um rio na região de Cidade Ademar, Zona Sul de São Paulo, foram afastados de suas funções pela Corregedoria da Polícia Militar de São Paulo. Dois sargentos e 11 cabos e soldados estão sendo ouvidos. O fato ocorreu na madrugada de segunda-feira, após uma abordagem policial de duas pessoas, uma das quais é a testemunha do caso, que foi gravado. A vítima da violência policial estaria viva, mas não foi localizada.
Durante uma patrulha, os policiais deram ordem de parada a duas pessoas que trafegavam em uma moto. Os rapazes fugiram, e os PMs, então, iniciaram uma perseguição que terminou com a captura da dupla. Um deles foi jogado no rio por um dos policiais. O outro chegou a ser levado para a delegacia. Agora, é a principal testemunha do caso. Câmaras corporais dos policiais registraram o episódio, que representa uma escalada da violência policial em São Paulo, onde vigora uma política de endurecimento das ações repressivas da Polícia Militar.
Leia também: Casos de violência policial voltam a chocar o Brasil
O episódio lembra uma chacina ocorrida no Rio de Janeiro, na década de 1960, durante o governo de Carlos Lacerda (UDN), no antigo Estado da Guanabara. A “Operação Mata-Mendigos” foi revelada pelo jornal Última Hora, vespertino que revolucionou a imprensa carioca. Moradores de rua, Elias Marcondes, Expedito Jesus Vieira e José dos Santos foram detidos e obrigados a entrar na caminhonete do Serviço de Repressão à Mendicância (SRM), órgão ligado à Secretaria de Segurança do Estado.
Era noite de segunda-feira, 15 de outubro de 1962, quando foram levados até os limites da então capital federal, em Santa Cruz, na Zona Oeste. O carro parou às margens do Rio Guandu, onde Elias, Expedito e José foram amarrados e jogados no curso d’água. Os três morreram afogados. Mais três viagens seriam realizadas. Carlos Lacerda promovia uma política de remoção de favelas na Zona Sul do Rio e pretendia erradicar a população de rua das vias públicas da região. Os agentes destacados para esse serviço decidiram resolver o problema jogando-os nos rios da Guarda e Guandu, que eram pontos de desova de cadáveres.
Cerca de 20 pessoas foram comprovadamente tiradas das ruas e lançadas nos dois rios pelos agentes do SRM, entre outubro de 1962 e janeiro de 1963, nove das quais morreram. A chacina só foi interrompida porque, em 17 de janeiro de 1963, a pernambucana Ondilina Alves Japiassu nadava bem. Jogada no Rio da Guarda, nadou até a outra margem e fugiu. Dias depois, denunciou a “Operação Mata-Mendigos”, ao jornal Última Hora. Quatro agentes da SRM foram presos e acusados da chacina.
O guarda civil José Mota, o fiscal da Guarda Noturna Pedro Saturnino dos Santos (mais conhecido como Tranca Ruas), o motorista Mário Teixeira, da Assistência Policial, e Nilton Gonçalves da Silva, servente do Ministério da Justiça, confessaram os crimes. Segundo a edição de O Globo de 28 de janeiro de 1963, a certa altura do seu depoimento, Tranca Ruas, que admitira ter disparado um tiro no ouvido de uma vítima antes de jogá-la no rio, denunciou os demais: “Eu não amarrei o peste sozinho! Todos fizemos isso, e eu, que já estou desgraçado, não posso pagar tudo sozinho. Vocês me ajudaram a amarrar o doido e jogar ele no rio!”.
Violência de Estado
Em 12 de fevereiro, os acusados da matança participaram da reconstituição do crime promovida pela polícia e pelo Ministério Público. Demonstraram como várias de suas vítimas resistiram e foram torturadas antes de serem lançadas ao rio. Ondilina não foi a primeira a escapar. Um homem identificado como Saci chegou a se segurar numa proteção de ferro na margem do rio, mas teve as mãos golpeadas com uma lanterna. Ele caiu na água, mas conseguiu nadar até a margem e começou a gritar. Assustados, segundo os depoimentos, os agentes fugiram levando Maria do Socorro, que foi espancada e abandonada numa rua. Estima-se em 50 pessoas o total de desaparecidos.
Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) na Assembleia do Estado da Guanabara constatou que os chefes do Serviço de Repressão à Mendicância autorizavam “deportações” de pessoas em situação de rua para suas cidades de origem, fora da capital. Entretanto, disseram não saber da matança. Relator da CPI, o deputado Paulo Duque livrou, em seu relatório, qualquer responsabilidade do governador Carlos Lacerda no escândalo.
Essa chacina se tornou um exemplo de violência de Estado contra populações vulneráveis em situação de rua. A associação ao caso do homem jogado no rio pelos policiais na Cidade Ademar, flagrados pelas próprias câmaras corporais, é pertinente. A política de endurecimento da repressão e flexibilização do uso de câmeras corporais estimula a violência policial desmedida. Sem elas, os policiais do 24° Batalhão da PM, localizado na cidade de Diadema, na Grande SP, poderiam ocultar o fato do homem atirado no rio, que ficaria na obscuridade.
O governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos), reagiu: em uma rede social, disse que o policial militar que “atira pelas costas” ou “chega ao absurdo de jogar uma pessoa da ponte” não está à altura de usar farda. Será investigado e “rigorosamente” punido. O secretário da Segurança Pública, Guilherme Derrite (PL), também criticou a ação do policial militar: “Anos de legado da PM não podem ser manchados por condutas antiprofissionais”. O procurador-geral de Justiça de São Paulo, Paulo Sérgio de Oliveira e Costa, também emitiu uma nota pública de repúdio: as imagens são “estarrecedoras e absolutamente inadmissíveis”.
Nas entrelinhas: todas as colunas no Blog do Azedo
O mercado faz o teste de São Tomé: pretende ver para acreditar na promessa de…