Derrotas do governo na Câmara e no Senado refletem desaprovação de Lula

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O presidente foi emparedado pela oposição, que conseguiu atrair as bancadas do Centrão. São dois grupos: um quer inviabilizar o governo e o outro faz chantagens

A escritora cearense Rachel de Queiroz (1910-2003), natural de Quixadá, foi uma grande jornalista, tradutora e dramaturga, sendo a primeira mulher a receber o “Prêmio Camões” (1993) e a ocupar uma vaga na Academia Brasileira de Letras, em 1977. Com 20 anos, em 1930, publicou seu primeiro romance, “O Quinze”, no qual retrata a seca de 1915 no Nordeste do país e a realidade dos retirantes nordestinos. Foi o primeiro de uma vasta obra literária, na qual se destacam “As Três Marias” (1939), “Dora Doralina” (1975) e “Memorial de Maria Moura” (1992).

Em 2002, Raquel de Queiroz publicou a coletânea infantil Meninos, eu conto (Record), no qual se destaca a fábula sobre a maternidade Bezerro sem mãe, que transcrevo a seguir:

“Foi numa fazenda de gado, no tempo do ano em que as vacas dão cria. Cada vaca toda satisfeita com o seu bezerro. Mas dois deles andavam tristes de dar pena: uma vaca que tinha perdido o seu bezerro e um bezerro que ficou sem mãe.

A vaquinha até parecia estar chorando, com os peitos cheios de leite, sem filho para mamar. E o bezerro sem mãe gemia, morrendo de fome e abandonado.

Não adiantava juntar os dois, porque a vaca não aceitava. Ela sentia pelo cheiro que o bezerrinho órfão não era filho dela, e o empurrava para longe.

Aí o vaqueiro se lembrou do couro do bezerro morto, que estava secando ao sol. Enrolou naquele couro o bezerrinho sem mãe e levou o bichinho disfarçado para junto da vaca sem filho. Ora, foi uma beleza!

A vaca deu uma lambida no couro, sentiu o cheiro do filho e deixou que o outro mamasse à vontade. E por três dias foi aquela mascarada. Mas no quarto dia, a vaca, de repente, meteu o focinho no couro e puxou fora o disfarce. Lambeu o bezerrinho direto, como se dissesse: ‘Agora você já está adotado’.

E ficaram os dois no maior amor, como filho e mãe de verdade.”

O ambiente no Congresso em relação ao governo Lula é mais ou menos o conto de Raquel de Queiroz, com a diferença de que os bezerros é que estranham a vaca e ainda não apareceu o vaqueiro. Os presidentes da Câmara, Hugo Motta (Republicanos-PB), e do Senado, Davi Alcolumbre (União-AP), ontem, resolveram dar um xeque-mate no governo com relação ao aumento do Imposto sobre Operações Financeiras (IOF). Pegaram o Palácio de Planalto de surpresa e, num recado claro, indicaram o líder do PL, Sóstenes Cavalcanti (RJ), um bolsonarista raiz, como relator do decreto que derrubou o aumento do IOF. Somente votaram contra o PT e PSol.

Leia também: Congresso não derrubava um decreto presidencial há mais de 30 anos

A rejeição ao aumento do IOF proposto pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad, e a pressão do Congresso por corte de gastos do governo, sem incluir as emendas parlamentares, porém, não significam apenas uma queda de braço em relação à política fiscal e um estranhamento entre o Executivo e o Legislativo, mas um desequilíbrio institucional perigoso na relação entre os Poderes. A derrota do governo na Câmara foi acachapante: 383 a 98. No Senado, a votação foi simbólica: somente a bancada do PT e o líder do PDT, Weverton Rocha (MA), votaram contra.

Semipresidencialismo

Decretado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva em 22 de maio, o aumento do IOF incide sobre operações de crédito, câmbio e antecipação de recebíveis (risco sacado), o que também atinge praticamente todo o setor varejista, distribuidores de combustíveis, agronegócio, operações de câmbio e importações. A lógica do governo era aumentar as alíquotas daqueles que ganham muito e pagam pouco imposto, porém, o Congresso não aceita aumentar a carga tributária.

Do ponto de vista institucional, a decisão transborda essa questão em si. Está mais do que evidente que o sistema presidencialista brasileiro está se tornando cada vez mais disfuncional. Enfraquecido pela desaprovação do governo nas pesquisas de opinião, o presidente Lula perdeu o controle de parte dos investimentos federais, que está sendo pulverizada entre as prefeituras do país por meio das emendas parlamentares e não tem maioria no Congresso para reverter essa situação.

Lula foi emparedado pela oposição, que conseguiu atrair as bancadas do Centrão para suas posições. São dois grupos, respectivamente: um quer inviabilizar o governo, o outro faz chantagens para obter mais vantagens. Desde o governo de Michel Temer, a gestão do Orçamento da União vem sendo compartilhada com o Congresso de maneira assimétrica: no lugar do presidencialismo de coalizão, surgiu um semipresidencialismo irresponsável.

Leia mais: Congresso unido para aumentar número de deputados e gastos

Antes de votação, a ministra das Relações Institucionais (SRI), Gleisi Hoffmann, declarou que a derrubada do decreto que aumento do IOF provocará a um novo contingenciamento de R$ 2,7 bilhões nas emendas parlamentares de 2025, e de R$ 7,1 bilhões em 2026. Gleisi argumentou que a medida é necessária para respeitar o arcabouço fiscal sem prejudicar o funcionamento de programas sociais. O governo terá que cortar mais R$ 10 bilhões apenas neste ano para cumprir a meta fiscal.

Nas entrelinhas: todas as colunas no Blog do Azedo

Luiz Carlos Azedo

Jornalista

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