Qualquer que seja o resultado, os problemas reais do Rio de Janeiro continuarão os mesmos e as dificuldades para enfrentá-los também
Com o país mergulhado na recessão e o governo Temer empenhado na aprovação de uma lei que limita o aumento dos gastos públicos à inflação passada, é duro ver uma campanha eleitoral na qual os candidatos prometem o que não vão fazer, pois são prisioneiros de contingências políticas, econômicas e administrativas determinadas pela crise que atravessa o país. As eleições do Rio de Janeiro são paradigmáticas nisso, pois trata-se de uma capital que sofre com situação financeira catastrófica do governo estadual e alguns de seus principais problemas exigem cooperação administrativa em nível horizontal, com os municípios da região metropolitana, e vertical, ou seja, entrosamento com os governos estadual e federal.
Tanto Marcelo Crivella (PRB) quanto Marcelo Freixo (PSol), independentemente da maior ou menor disposição de cooperação com outras forças políticas no poder, terão que se ajustar à realidade. O debate entre eles enveredou por um caminho de radicalização, que passa pela exumação de fatos do passado. Crivella é apontado como um evangélico intolerante e truculento; Freixo, um esquerdista radical e sectário. Ambos têm em torno de si militâncias ideologicamente extremadas, uma de natureza religiosa, outra política. Esse tipo de confronto não combina com uma cidade que sempre tripudiou dos poderosos, cujo hino é uma marchinha de carnaval e que todo ano homenageia seus heróis glamorizando a malandragem e carnavalizando a história.
O alicerce principal da candidatura de Crivella são as famílias pobres dos morros e subúrbios do Rio de Janeiro. O que explica sua força entre os jovens é a família unicelular patriarcal, estruturada, na qual as igrejas evangélicas, principalmente a Igreja Universal do Reino de Deus, sedimentaram seu prestígio. Nessas comunidades, a maioria loteada por traficantes e milícias, a religião cumpre um papel social estruturador e protetor das famílias. Vem daí sua força política, que foi sendo consolidada na medida em que se ampliou a representação parlamentar dos evangélicos em todos os níveis.
A candidatura de Freixo seduziu os jovens de classe média do Rio de Janeiro, principalmente os estudantes, cuja radicalização política está diretamente relacionada à crise de identidade de uma geração que sofre com o desemprego, a falta de qualificação profissional e as dificuldades de acesso à cultura e ao lazer. Essa insatisfação havia sido demonstrada nas manifestações de 2013, foi fraturada pelo impeachment de Dilma Rousseff e, em parte, desaguou na campanha de Freixo, durante o processo eleitoral. O candidato do PSol, de certa forma, é prisioneiro do discurso que seduziu esses jovens, e isso dificulta sua campanha.
Quem decide
Quem decidirá a eleição, porém, não é nenhuma das forças que hegemonizam os dois projetos, a Igreja Universal do Reino de Deus e o PSol. É o deslocamento das forças centristas que melhor representam as camadas médias urbanas. Esse deslocamento estava ocorrendo por gravidade em favor de Crivella, mas houve uma forte reação da elite carioca na direção de Freixo, o que tornou a disputa mais acirrada nesta reta final, embora o primeiro ainda seja o favorito. Servidores públicos, profissionais liberais, artistas e intelectuais, empresários do setor de comunicação protagonizam a reação do candidato, do PSol; de outro lado, trabalhadores do setor de serviços, comerciantes e empresários ligados aos setores de transporte e construção civil apoiam o pastor da Universal.
Qualquer que seja o resultado, os problemas reais do Rio de Janeiro continuarão os mesmos e as dificuldades para enfrentá-los também. Mas as diferenças de ponto de vista dos dois candidatos de certa forma vão condicionar as soluções. Saúde, educação, segurança e mobilidade urbana são as prioridades a serem enfrentadas, num contexto de crise fiscal que torna dramática a situação carioca. Nessas áreas, nada anda sem cooperação com o governo federal e tudo se complica na medida em que o governo estadual entrou em colapso. É o caso, por exemplo, da segurança pública, na qual a guarda municipal é força secundária, mas importante do ponto de vista da ordem pública.
Nesse caso, é interessante analisar como a ideologia pode atrapalhar a solução dos problemas. Por exemplo, Freixo é um militante dos direitos humanos, é acusado de dar apoio aos black blocs nas manifestações de protesto, como será sua atuação quando for responsável pela gestão do código de posturas nas ruas e praças do Rio de Janeiro? Crivella é um moralista, como atuará em relação aos costumes dos cariocas, que são festeiros por natureza? Mas essas diferenças vão se manifestar também em outras áreas, como na questão do aborto nos hospitais públicos e do ensino religioso nas escolas. Mas também há diferenças em relação a questões mais complexas, como lidar com o poderoso cartel das empresas de transporte, ligadíssimo ao governo do estado, e o lobby do mercado imobiliário, grande protagonista do Porto Maravilha e do desenvolvimento urbano da cidade, que muitos associam a Eduardo Paes. A propósito, o atual prefeito está com Freixo e não abre.