Assassinato de Vladimir Herzog na tortura marcou declínio da ditadura militar

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A lembrança do jornalista assassinado é um alerta. Denuncia o preço do silêncio e o perigo da indiferença. Segundo Dom Paulo Evaristo Arns, “a morte de um homem justo pode mudar o destino de um país”

Há cinquenta anos, em 24 de outubro de 1975, o jornalista Vladimir Herzog foi preso por agentes do DOI-Codi do II Exército, em São Paulo. Na manhã seguinte, apareceu morto em sua cela, vítima de tortura. A versão oficial de “suicídio” — sustentada por laudos forjados e uma foto grotescamente encenada — foi rejeitada pela sociedade. O crime, cometido em plena vigência do AI-5, rompeu o pacto de silêncio que sustentava o regime e marcou o início do seu declínio.

A brutalidade contra Herzog revelou o que muitos já sabiam, mas poucos ousavam denunciar: o terror de Estado operava de forma sistemática, exterminando opositores políticos. Dias antes, o jovem dirigente comunista José Montenegro de Lima, da Seção Juvenil do PCB, havia sido sequestrado e morto. Em 8 de outubro, o jornalista Orlando Bonfim Júnior, editor do jornal clandestino Voz Operária, membro do Comitê Central do PCB, sofreu o mesmo destino. Ambos foram assassinados com uma injeção letal, como outros 10 dirigentes do antigo PCB que “desapareceram”. Em janeiro de 1976, seria a vez do operário Manoel Fiel Filho, também morto sob tortura nas dependências do DOI-Codi.

Mas foi a morte de Herzog — um jornalista conhecido, com atuação na TV Cultura e na USP, e com vida profissional legal — que rompeu a muralha de medo. A reação foi imediata e ampla. No dia 31 de outubro de 1975, milhares de pessoas lotaram a Catedral da Sé para um culto ecumênico celebrado por Dom Paulo Evaristo Arns, o rabino Henry Sobel e o pastor Jaime Wright, com o apoio decisivo do jornalista Audálio Dantas, então presidente do Sindicato dos Jornalistas de São Paulo. A imagem de uma praça cercada por agentes do Dops e de fiéis orando em silêncio ficou gravada como símbolo de resistência civil à ditadura.

A comoção nacional obrigou o regime a recuar. Pouco depois, a execução de Manoel Fiel Filho levou o presidente Ernesto Geisel a demitir o comandante do II Exército, Ednardo D’Ávila Mello, e o chefe do Centro de Informações do Exército, Confúcio Danton de Paula Avelino. Pela primeira vez, o governo militar reconhecia, ainda que de forma indireta, que as execuções haviam ultrapassado todos os limites. O assassinato de Herzog se tornou, assim, um divisor de águas: o declínio do regime, com o início do processo de distensão lenta e gradual que culminaria na anistia e na redemocratização, com a eleição de Tancredo Neves no Colégio Eleitoral, em 1985. Foram 10 anos de lutas intensas pela democracia, com sucessivas vitórias da oposição nas eleições consentidas.

O caso Herzog também transformou a luta por memória e justiça. Sua viúva, Clarice Herzog, enfrentou décadas de batalhas judiciais. Em 1978, conseguiu uma sentença inédita condenando a União pela prisão, tortura e morte do marido — decisão confirmada anos depois pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, que responsabilizou o Estado brasileiro por não investigar e punir os autores. Em 2013, o atestado de óbito foi corrigido, substituindo “asfixia mecânica por enforcamento” por “lesões e maus-tratos”.

Leia também: Estado indeniza família pela tortura e o assassinato de Herzog

Resgate político

Cinco décadas depois, as homenagens multiplicam-se. A Associação Brasileira de Imprensa (ABI), da qual tenho a honra de integrar o Conselho Deliberativo, instituiu 2025 como o Ano Vladimir Herzog, reforçando o dever de lembrar. O Instituto Vladimir Herzog organiza atos, publicações e exposições, inclusive a recriação do culto inter-religioso na Catedral da Sé. É um movimento para que as novas gerações saibam o que aconteceu. A memória é o antídoto contra o esquecimento e o autoritarismo. Hoje, a idade média na Cãmara dos Deputados é de 49 anos, ou seja, a maioria nasceu depois do caso Herzog.

As homenagens incluem o lançamento do documentário A Vida de Vlado — 50 anos do Caso Herzog, dirigido por Simão Schols e narrado por Chico Pinheiro, que estreia na 49ª Mostra Internacional de Cinema, na Cinemateca Brasileira. O filme reconstrói sua trajetória pessoal e profissional — da infância na antiga Iugoslávia, fugindo do nazismo, até o jornalismo engajado e a defesa da liberdade de imprensa. Depoimentos de colegas e ex-presos políticos, como Paulo Markun, Dilea Frate, Sérgio Gomes e o médico Ubiratan de Paula Santos, revelam o impacto de sua morte e a luta de Clarice Herzog para expor a verdade.

O assassinato de Vlado também inspirou o movimento pela transformação dos antigos centros de tortura em memoriais públicos. O prédio do DOI-Codi paulista, no bairro do Paraíso, foi tombado e reconhecido como Ponto de Memória pelo Ibram. A chamada Casa da Morte, em Petrópolis, passa por processo semelhante. Trata-se de uma política de memória, não é apenas homenagem, mas um compromisso com a democracia e com o futuro.

Nas próximas terça-feira, será vez da Associação Scholem Aleichem (ASA), no Rio de Janeiro, iniciar um seminário sobre a resistência democrática em homenagem a Herzog. Essas iniciativas se tornam ainda mais relevantes num momento em que setores políticos buscam relativizar o golpe de 1964 e reabilitar o discurso autoritário. É indecente comparar a anistia recíproca de 1979, que blindou torturadores e assassinos do regime, com as tentativas atuais de conceder perdão aos responsáveis pelos atos golpistas de 8 de janeiro de 2023. Aqueles que hoje pedem anistia são, muitas vezes, os mesmos que exaltam os algozes de Herzog, Montenegro, Bomfim e Fiel.

Leia mais: Blindagem a Eduardo Bolsonaro expõe crise ética na Câmara

A lembrança de Vladimir Herzog é um alerta. Ela denuncia o preço do silêncio e o perigo da indiferença. Como escreveu Dom Paulo Evaristo Arns, “a morte de um homem justo pode mudar o destino de um país”. Herzog foi esse homem. Cinquenta anos depois, o corpo de Vlado numa cela de uma unidade militar continua a nos interpelar, como símbolo do jornalismo livre e da dignidade humana. A democracia só se sustenta quando a verdade seja dita e a memória preservada.

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Luiz Carlos Azedo

Jornalista

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