“São governos falidos, eleitores ressentidos, pagadores de impostos que querem mais benefícios e poderosos sindicatos que querem manter privilégio. Impossível atender a todos”
Não foi a primeira vez — provavelmente, não será a última — que alguém próximo ao presidente Bolsonaro ameaça a oposição com o espectro do AI-5. Mas, desta vez, a coisa foi mais grave, porque se tratou do ministro da Economia, Paulo Guedes. Foi um raciocínio político com começo, meio e fim: “É irresponsável chamar alguém pra rua agora pra fazer quebradeira. Pra dizer que tem que tomar o poder. Se você acredita numa democracia, quem acredita numa democracia espera vencer e ser eleito. Não chama ninguém pra quebrar nada na rua. Ou democracia é só quando o seu lado ganha? Quando o outro lado ganha, com 10 meses você já chama todo mundo pra quebrar a rua? Que responsabilidade é essa? Não se assustem, então, se alguém pedir o AI-5. Já não aconteceu uma vez? Ou foi diferente?”, disse o ministro. “É inconcebível, a democracia brasileira jamais admitiria, mesmo que a esquerda pegue as armas, invada tudo, quebre e derrube à força o Palácio do Planalto, jamais apoiaria o AI-5, isso é inconcebível. Não aceitaria jamais isso”, remendou Guedes, depois.
A declaração do ministro da Economia sobre o AI-5 provocou reações do presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Dias Toffoli, durante Encontro Nacional do Poder Judiciário, em Maceió: “O AI-5 é incompatível com a democracia. Não se constrói o futuro com experiências fracassadas do passado”. O presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, também criticou o ministro Guedes: “Não dá mais para usar a palavra AI-5 como se fosse bom-dia, boa tarde, oi, cara, não dá”. Deu uma mão no cravo e outra na ferradura, ao se dizer assustado com o comportamento dos políticos, que parecem estar “mais se preparando para uma briga campal do que pra uma disputa eleitoral no futuro”, uma alusão ao ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
O raciocínio de Guedes merece uma reflexão mais profunda. Não teria a mesma dimensão se não estivéssemos vivendo uma conjuntura complexa e de grande instabilidade na América do Sul, que os investidores estão acompanhando com apreensão. Ninguém deseja uma convulsão política e social no Brasil, que, de fato, tem um presidente da República que não completou um ano de mandato. Entretanto, no momento, apesar do apoio do Congresso à reforma da Previdência e da blindagem da política econômica pelas suas lideranças, o governo tem avaliação negativa do seu desempenho, por razões que não são decorrentes apenas do quadro de desigualdades sociais profundas e desemprego em massa que encontrou. Parte do desgaste decorre de atitudes que confrontam a opinião pública em relação a temas que contam com um certo consenso social, mas o governo afronta, principalmente, em áreas onde as políticas públicas precisam de mais eficiência e menos ideologia.
Crise do Estado
Ademais, a criação do Aliança pelo Brasil pelo presidente Jair Bolsonaro, com um programa político ultraconservador, dobrou a aposta na radicalização política e ideológica, com repercussão muito negativa na imprensa internacional, que identifica o novo partido como uma organização de ultradireita alinhada com outros partidos congêneres da Europa. Por isso mesmo, o posicionamento do governo brasileiro não é visto como um fenômeno isolado, mas como parte de um processo com viés autoritário em curso, principalmente no Leste Europeu e na Ásia, e que seduz setores da sociedade na Europa Ocidental e até nos Estados Unidos.
Há uma crise de financiamento do Estado democrático em todo o Ocidente. Quase todos os governos arrecadam menos do que gastam, a começar pelos Estados Unidos, que só teve cinco superavits desde 1960, e a França, que não produz um superavit desde 1975. A primeira-ministra alemã, Angela Merkel, costuma dizer que a União Europeia abarca 7% da população, 25% do PIB mundial e 50% dos gastos sociais. No caso dos países da América Latina, essa crise é agravada pelo desemprego em massa e a ampliação da miséria. Ou seja, a vida não está fácil para ninguém, é preciso fazer reformas para que o Estado volte a gastar menos do que arrecada e tenha condições de investir, aqui e no mundo.
São governos falidos forçados a cortar serviços públicos, eleitores ressentidos querendo manter seus direitos sociais, pagadores de impostos que querem mais benefícios com o dinheiro que dão ao governo e poderosos sindicatos de servidores públicos que querem manter seus privilégios. Impossível atender a todos. Nessa crise, que põe em xeque as democracias representativas, surgem ideias totalitárias, principalmente na Europa e na Ásia. O modelo chinês desafia valores do Ocidente, como o sufrágio universal, mas obtém resultados econômicos impressionantes. Nesse mundo em transformação, no qual as novas tecnologias são uma ferramenta importante para enxugar o Estado e melhorar o desempenho dos governos, porém, é preciso responder a duas questões. Primeiro, para que serve o Estado? Segundo, como modernizá-lo na democracia? As tentações autoritárias vêm das dificuldades para responder a essas perguntas.