O conceito de “inimigo objetivo” alimenta o ódio de natureza ideológica, que marca a política brasileira nos últimos anos e mostra a cara, novamente, no processo eleitoral, do centro para a periferia
Vamos começar pela Assembleia-Geral da Organização das Nações Unidas, que coincide com a escala da guerra na Palestina e no Líbano, e a penúltima semana de campanha eleitoral no Brasil. Parece uma mistura de alhos com bugalhos, mas não é.
A gramática da democracia está ancorada nos conceitos de igualdade, liberdade, tolerância, direitos humanos e cidadania, a mesma das relações internacionais e das eleições municipais. De Gaza, na Palestina, ao Vale do Bekaa, no Líbano; de São Paulo, a capital paulista, a Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense, em princípio, “todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direito”, como proclama o primeiro artigo da Declaração Universal dos Direitos Humanos, aprovada em 1948 — inspirada nas declarações de Independência dos Estados Unidos, em 1776, e da Revolução Francesa de 1789.
A globalização desses direitos parte da ideia de que sua violação em qualquer lugar repercute nos demais. A Convenção da ONU, de 1965, para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial e a Convenção para a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio, de 1948, são exemplos desse entendimento. Ambas têm como principal motivação a violência nazista.
A “racionalidade” nos campos de concentração, em Auschwitz e Birkenau, na Polônia, levou à discussão do mal sob dois aspectos: o mal ativo, da violência prepotente e sem limites do poder; e o mal passivo, sofrido por aqueles que cumprem uma pena sem culpa, devido aos preconceitos étnicos, sociais e de gênero.
O que está acontecendo em Gaza e se estende ao Líbano se aproxima do genocídio, o maior delito perpetrado por homens contra outros homens. Sua natureza vai além guerra, que pode conduzir ao extermínio, mas o seu fim é a vitória. No genocídio organizado e premeditado, o extermínio é um fim em si mesmo.
A “limpeza étnica” é a antessala do genocídio. Nas suas reflexões sobre o julgamento do criminoso nazista Adolf Eichmann, em Jerusalém, Hannah Arendt mostrou que a ideia de “inimigo objetivo” alimentou “o ódio racional, o ódio voltado não contra esta ou aquela pessoa, mas contra um genus e, portanto, contra todos aqueles que pertencem àquele genus, independentemente do fato de nos terem trazido algum dano”.
As condições para uma humanidade mais pacífica e estável são o aumento do número de Estados democráticos e o avanço dos processos de democratização do sistema internacional. Estamos, porém, vivendo um retrocesso. O unilateralismo norte-americano no Iraque, fruto de efêmera hegemonia unipolar, criou mais insegurança quanto ao padrão de conduta aceitável no plano internacional, diante de um sistema internacional heterogêneo, no qual os Estados-membros não têm uma concepção comum sobre como organizar a vida coletiva.
Pacto da brutalidade
A contrapartida é o unilateralismo de outras nações, quando se voltam para si e não para o outro, na resolução de conflitos, como agora, nas guerras da Ucrânia e de Gaza. Uma espécie de “pacto global dos violentos” desestabiliza a ordem mundial. Sua dimensão transnacional aparece tanto no terrorismo fundamentalista quanto no terror de Estado. Ambos convergem contra a democracia. O “inimigo objetivo” sempre alimenta a violência política, como acontece na Venezuela, por exemplo.
Está presente no ódio de natureza ideológica, que marca a política brasileira nos últimos anos, e mostra a cara novamente, no atual processo eleitoral, do centro para a periferia. Na mesma semana em que assistimos a novas cenas de pugilato num debate eleitoral em São Paulo, a maior cidade do Brasil, um candidato a vereador foi morto em Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense; outro apareceu morto no porta-malas de um carro em Santo André, no ABC paulista.
A Constituição de 1988 se fundamenta nos direitos humanos. A radicalização política, por meios truculentos, é um fator perturbador do processo eleitoral e uma ameaça ao Estado de Direito Democrático. A lei do mais forte e a justiça pelas próprias mãos precisam ser desencorajadas nas disputas eleitorais. A democracia é uma conquista civil, da qual não se pode abrir mão, precisamente porque substituiu a violenta luta pela conquista do poder por uma disputa partidária com base na livre discussão de ideias.
A eleição é o ato fundamental do sistema democrático. Temos cinco séculos de prepotência e violência. Resolver as disputas pelo voto, em eleições limpas, pacíficas e ordeiras, é uma grande conquista da nossa sociedade.
Entretanto, há dezenas de pedidos de intervenção federal para garantir as eleições. Doze estados alegam não ter condições de oferecer a necessária segurança aos eleitores. O pleito em São Paulo mostra um empate técnico entre Ricardo Nunes (MDB), Guilherme Boulos (PSol) e Pablo Marçal (PRTB), com 24%, 23% e 20% das intenções de voto, respectivamente. Diante do que ocorreu nos debates, até que ponto a convergência da violência verbal das redes sociais à violência física, na campanha, não se tornou uma estratégia de marketing eleitoral? Isso é muito preocupante.
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