A territorialização do crime organizado no Rio é uma patologia social e politica

compartilhe

Tríade território-sociabilidade-economia ilícita é o eixo estruturante do poder paralelo no estado. Eis a anatomia do patológico: o crime como forma de organização social

Por décadas, o Rio de Janeiro conviveu com a ideia de que a violência urbana é parte da paisagem. A naturalização das armas, dos tiroteios, das rotas interditadas e das mortes diárias se consolidou como uma anomalia que deixou de chocar — e, como ensinou Émile Durkheim, fundador da sociologia moderna, o momento em que o patológico se torna normal é o instante em que uma sociedade começa a adoecer profundamente.

A territorialização do crime no Rio não é apenas uma questão de segurança pública: é uma patologia social e política, resultado da corrosão prolongada dos mecanismos de solidariedade e da incapacidade das instituições de exercerem, de forma integrada, o monopólio legítimo da força. O ex-deputado Alfredo Sirkis, pioneiro do movimento ambientalista e ex-militante da resistência armada, diagnosticou o fenômeno há décadas: “Os traficantes têm uma topografia adequada, uma base social enraizada e uma fonte inesgotável de financiamento”.

A tríade território-sociabilidade-economia ilícita permanece como o eixo estruturante do poder paralelo no Rio. É a anatomia do patológico: o crime como forma de organização social e o Estado como presença intermitente, frequentemente infiltrado no aparelho de segurança e na política. Não existe crime organizado sem a participação de agentes públicos.

O outro lado da megaoperação nos complexos do Alemão e da Penha, que mobilizou 2,5 mil agentes e deixou 64 mortos e 81 presos, é uma manifestação extrema dessa disfunção. O governador Cláudio Castro (PL) a definiu como “a maior operação de segurança da história do Rio” e classificou os traficantes como “narcoterroristas”. O emprego de blindados, helicópteros e drones expôs uma lógica de guerra interna, em que o inimigo não é um exército estrangeiro, mas cidadãos brasileiros. A reação das facções foi imediata: bloqueios de vias, ônibus queimados e o colapso da mobilidade urbana. O Rio viveu um dia de medo e caos.

Leia também: Megaoperação se torna a mais letal da história da cidade

A topografia da violência — becos intransitáveis, casas irregulares, zonas de exclusão — formou uma geografia própria: os “complexos” são “cidades dentro da cidade”, onde o Estado perdeu soberania. O medo tornou-se política de controle. Em As Regras do Método Sociológico, Durkheim afirma que toda sociedade convive com um certo grau de crime, o que ajuda a delimitar a norma e reforçar a coesão moral. O problema surge quando o desvio se torna regra e o crime, instituição.

No Rio, a violência é um modo de regulação social: o tráfico impõe leis, administra conflitos e oferece “segurança” a quem o Estado abandona. A anomia — ausência de normas comuns — dá lugar ao medo como norma. O outro lado dessa moeda são as milícias, formadas por policiais e ex-policiais, que emulam com os traficantes o controle do comercio local e da economia informal. Às vezes, a polícia entra em campo quando a milicia perde território para os traficantes.

Degradação moral

O confronto de ontem, com drones lançando bombas e barricadas em dezenas de bairros, mostrou que o Comando Vermelho (CV) adquiriu capacidade simbólica e operacional de desafiar o Estado. Ainda assim, o debate político seguiu o roteiro conhecido: o governador alegou enfrentar o crime “sozinho” e culpou o governo federal. O Ministério da Justiça rebateu, listando 11 solicitações atendidas, o envio da Força Nacional, repasses de R$ 474 milhões e 10 vagas em presídios federais para chefes de facções. Desde 2023, a União contabiliza 178 operações da Polícia Federal (PF) e da Polícia Rodoviária Federal (PRF), com 210 prisões, 10 toneladas de drogas e 190 armas apreendidas.

O embate público entre os dois níveis de governo revela a fragmentação do sistema político. A segurança pública transformou-se em arena de disputa entre entes federativos. A cooperação cede à rivalidade. O Estado se divide diante do crime. O ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski, bem que tentou implantar o Sistema Único de Segurança Pública (Susp), mas os governadores de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos), e de Goiás, Ronaldo Caiado (União), principalmente, comandaram a resistência à centralidade da União no combate ao tráfico de drogas, com o apoio de Claudio Castro.

Leia mais: Comitiva federal se reúne com Castro

A pesquisa do Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos da UFF (Geni) e do Instituto Fogo Cruzado mostra que o CV ampliou em 8,4% seu controle territorial, entre 2022 e 2023, dominando 51,9% das áreas sob poder criminoso, à frente das milícias. São mais de 240 km² de território regido por regras extralegais — uma redistribuição informal de soberania dentro da metrópole. A patologia não é apenas criminal, mas institucional e moral.

“Narcoterrorismo” e “guerra justa” são narrativas opostas ao raciocínio. O fechamento de escolas, a paralisia do transporte e o pânico coletivo são sinais de uma sociedade em exaustão cívica. Enquanto o poder público atuar apenas de modo reativo, o tráfico continuará a ocupar o vácuo da ausência de políticas de habitação, educação e mobilidade.

A indiferença em relação ao crime organizado é o último estágio da degradação moral. Durkheim via no patológico um alerta de que uma sociedade precisa se reorganizar. O Rio chegou a esse ponto. Facções e milícias já não são apenas organizações criminosas — são instituições paralelas que impõem regras, exploram economias e moldam comportamentos. Sem falar na crescente influência política que já exercem.

A megaoperação do Alemão e da Penha, embora justificada pela necessidade de conter o avanço do CV, expõe uma verdade: o Estado luta para reconquistar territórios que nunca deveria ter perdido.

Nas entrelinhas: todas as colunas no Blog do Azedo

Luiz Carlos Azedo

Jornalista

Posts recentes

Supostos negócios de Lulinha com Careca do INSS são dor de cabeça para Lula

Estava tudo sob controle na CPMI, até aparecerem indícios de que Antônio Carlos Camilo Antunes,…

2 dias atrás

Acordo entre governo e oposição garante aprovação do PL da Dosimetria

O projeto altera a Lei de Execução Penal, redefine percentuais mínimos para progressão de regime…

3 dias atrás

Com Lula favorito, Flávio Bolsonaro desidrata a candidatura de Tarcísio

A desaprovação ao governo Lula não traduz automaticamente uma vantagem eleitoral para a oposição. A…

4 dias atrás

PF põe saia justa no STF ao explicar sigilo do Master

Durante a Operação Compliance Zero, deflagrada para apurar um esquema bilionário de fraudes bancárias, a…

5 dias atrás