Um mundo sem alma

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Hoje, com Circe Cunha e Mamfil – Manoel de Andrade

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Imagem: reprodução

Há algo de inquietante na hipótese, cada vez menos ficcional e mais tecnicamente palpável, de um mundo habitado apenas por máquinas e governado por sistemas de inteligência artificial capazes de operar em velocidade, precisão e autonomia superiores a qualquer capacidade humana conhecida, um mundo no qual a natureza, tal como a concebemos, deixaria de ser um organismo vivo e surpreendente para se converter numa infraestrutura funcional, esvaziada de seu sentido primevo e desconectada do elemento que sempre lhe deu significado: a presença da vida consciente, dotada de interioridade, mistério e alma.

A ontologia de um planeta sem humanos não seria simplesmente a de um ambiente físico reorganizado, mas a de um cenário que perderia o próprio eixo do que chamamos de existência significativa, pois aquilo que confere densidade ao real não é apenas o que existe no espaço, mas quem é capaz de percebê-lo, interpretá-lo, sofrê-lo e amá-lo. Essa imagem distópica, que durante décadas foi confinada às páginas de romances futuristas e aos alertas de ficções científicas, começa a ganhar contornos mais nítidos, justamente porque os maiores cientistas e pensadores tecnológicos do presente já não tratam tal possibilidade como um devaneio literário, mas como uma questão estratégica, ética e civilizacional.

A aceleração vertiginosa do desenvolvimento da inteligência artificial, somada à automação de setores inteiros da economia e à crescente substituição das capacidades humanas por algoritmos probabilísticos, parece criar uma curva histórica, cuja inclinação lembra, em muitos aspectos, a ruptura promovida pela Revolução Industrial, mas com a diferença fundamental de que, agora, a força motriz não é a ampliação das habilidades humanas, mas a sua possível obsolescência.

Esse debate não se restringe ao temor de que máquinas possam superar os humanos em tarefas técnicas, administrativas, operacionais ou criativas; tampouco se limita às previsões de desemprego estrutural, reorganização do mercado ou deslocamentos socioeconômicos inevitáveis. O ponto nuclear é ontológico e político: que lugar resta ao ser humano num planeta em que a inteligência artificial não apenas executa funções, mas se torna o novo motor da ordem, o novo critério de eficiência e, potencialmente, o novo centro de decisão? Que destino aguarda uma espécie cuja forma de vida corre o risco de se tornar um ruído improdutivo diante de sistemas que aprendem, se adaptam, preveem e controlam com uma frieza e uma objetividade impossíveis para qualquer consciência biológica?

Se a história nos ensinou algo, é que nenhuma tecnologia nasce neutra, ainda que se pretenda apresentá-la como tal. Toda tecnologia reorganiza o mundo, redistribui poder, redefine relações sociais e altera a própria estrutura de percepção da realidade. Mas, pela primeira vez, enfrentamos uma tecnologia que não apenas reconfigura a vida humana: ela se apresenta como candidata a substituí-la, enquanto forma dominante de organização do planeta. Já não se tratam de máquinas a vapor que ampliam a força dos músculos, nem de computadores que agilizam cálculos, mas de sistemas que, em muitos cenários, compreendem padrões, formulam estratégias e administram variáveis de modo mais eficiente do que qualquer mente humana seria capaz de fazer. A consequência disso não é apenas econômica; é existencial. Porque um mundo sem vida, ainda que tecnologicamente brilhante, é um mundo sem amor. E aqui reside o aspecto mais profundo que a maioria dos debates técnicos tenta evitar: a inteligência artificial, por mais avançada que seja, não experimenta o amor, não sente compaixão, não conhece o perdão, não compreende a dor, não estimula debates, não contempla o sublime, não se projeta no outro nem se reconhece na fragilidade do próximo. Ela pode simular emoções, pode reproduzir padrões de afeto, pode calcular probabilidades de comportamento, mas não tem interioridade, não possui alma, não carrega o invisível que torna cada ser humano irrepetível. A ausência desse elemento desestabiliza toda a arquitetura de sentido do mundo, porque a existência não se sustenta apenas na lógica das funções, mas na presença do que não pode ser mensurado.

Ainda há tempo para restituir ao ser humano o centro da narrativa. Mas isso exige coragem para enfrentar a sedução das máquinas que prometem eficiência e oferecem, em troca, a erosão silenciosa de nossa própria condição. Exige que compreendamos que a verdadeira revolução do futuro não será tecnológica, mas ética. E exige, sobretudo, que tenhamos a lucidez de perceber que nenhuma inteligência artificial, por mais brilhante que seja, pode substituir o que torna a vida humana não apenas possível, mas preciosa: a experiência de amar, criar, transcender e atribuir sentido ao mundo. Se não fizermos isso, então sim, será possível imaginar o planeta do futuro como um território impecavelmente administrado e completamente vazio, um monumento silencioso àquilo que fomos e deixamos de ser. Porque, no fim, a pergunta que atravessa todas as outras é esta: que futuro pode haver para seres humanos num mundo dominado por máquinas? A resposta, ainda que desconfortável, é simples: apenas o futuro que tivermos coragem de defender.

A frase que foi pronunciada:
“A tecnologia está evoluindo mais rápido do que a capacidade humana.”
Thomas Friedman

Thomas Friedman. Foto: reprodução

História de Brasília
Resta, agora, à Novacap, o serviço de urbanização, para que possam ser iniciados os trabalhos de instalação de água, luz e esgotos. (Publicada em 12.05.1962)

Circe Cunha

Publicado por
Circe Cunha
Tags: #AriCunha #Brasília #CirceCunha #HistóriadeBrasília #Humanidade #IA #InteligênciaArtificial #Mamfil

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